O som do rugido da onça - Micheliny Verunschk
O som do rugido da onça (2021) é um romance baseado na história de duas crianças indígenas raptadas do Brasil pelos cientistas alemães Spix e Martius. No livro, as crianças são chamadas de Iñe-e e Juri. Junto a outras crianças de diferentes povos e a espécies animais e vegetais, elas são transportadas até a Alemanha para serem exibidas como peças exóticas na corte.
“Quando Iñe-e morreu ela estava com doze anos de idade. Então, essa é a voz da menina morta. E se alguém perceber nela um acento rascante, e acaso a confundir com uma voz muito velha que se eleva de uma sepultura congelada, garanto que é da infância que essa voz brota, nasce e se levanta. E toda voz da infância, sabe-se, é selvagem, animal, insubordina os sentidos.”
A narrativa em terceira pessoa dá voz às
crianças, em especial a Iñe-e, mas também aos rios, às onças, e a uma
mulher do século XXI, com uma história como a de muitos brasileiros
descendentes de antepassados indígenas cuja história se perdeu. Existem
referências a diferentes povos e como sua cultura, em paralelo à
destruição branca e capitalista, reverbera nesse país que existe hoje.
Há momento em que também temos contato com os pensamentos dos
colonizadores, o ego e o remorso, que raramente é verdadeiro
arrependimento.
De forma lírica e fluida, a obra é atravessada
por passado e presente, com citações de personagens históricas com sua
narrativa colonizadora e por notícias atuais, que alertam para a
necessidade de se ouvir as vozes levantadas pela autora.
“Os índios vistos como parte da fauna: o texto da parede em letras graúdas a atinge como um soco. Murmurando, Josefa lê a informação que segue esse anúncio com um sentimento de incredulidade. Sem nenhum adorno, sem nenhuma vergonha em naturalizar a barbárie, as palavras do curador a desnorteiam.”
Embora não seja um livro longo, para mim não foi uma leitura rápida, devido a sua proximidade com a realidade, tanto histórica quanto atual, que me fez chorar várias vezes. Hoje, povos indígenas no Brasil vivem em constante estado de alerta e prejuízo por invasões e crimes¹, contaminação por garimpo ilegal², ameaças à demarcação de suas terras³, e mentiras veiculadas até mesmo pelo (ainda) presidente da república4. No entanto, suas pautas continuam negligenciadas.
“Ela viu o seu povo se misturar com os outros povos, na língua e no sangue; mas, se uma alegria resultou disso, de igual modo também que o que derivou foi uma grande negação, o povo negando a si mesmo. Tudo é índio, ninguém é índio. E o Brasil, essa igara.”
O
som do rugido da onça é uma obra importante para nos provocar - como à
personagem Josefa, nossa contemporânea -, ao resgate da nossa memória
coletiva, das nossas origens não brancas, tão apagadas pelo
colonialismo. E que a dor causada transforme as lágrimas em luta e
justiça.
“Uaara-Iñe-e saiu de dentro d'água com Onça Grande, Tipai uu. Uaara-Iñe-e não figurava mais nem como a menina que tinha sido nem como a onça nova em que há muito pouco tinha se transformado. Ela saiu do igapó como onça muito velha, onça que sabia ter reiva, e ódio suçuaraneando dentro dela andejava pelo caminho do sangue.”
Para saber mais sobre a obra, recomendo a live de lançamento com a autora: https://www.youtube.com/watch?v=OfA3U99W-Y8.
¹ Aumentam invasões e crueldade contra indígenas no Brasil
² Ao amamentar, mães Munduruku podem contaminar seus filhos com mercúrio
³ O que é o Marco Temporal e como ele ameaça os direitos indígenas
4 Bolsonaro mentiu de novo e não, os Yanomami não têm o canibalismo como prática
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