História do novo sobrenome - Elena Ferrante
Enquanto A amiga genial nos apresenta desde o título a relação
indivisível e ambivalente de Lila e Lenu a partir de uma proximidade
espacial, História do novo sobrenome, segundo livro da tetralogia
napolitana é sobretudo sobre Lila, cuja história e movimentos
impulsionam as reações e sentimentos de Lenu em grande parte do livro,
mas a partir de uma distância espacial um pouco maior.
Os
primeiros capítulos de História do novo sobrenome consolidam a tragédia
anunciada do casamento de Lila e Stefano. E apesar de seus sentimentos
conflitantes em relação a Lila e a tudo que a cerca, Lenu sente a mesma
profunda empatia pela amiga desde o momento em que Marcello Solara
aparece, calçando os sapatos que ela criara, a única pessoa que Lila
fizera Stefano prometer que não pisaria em seu casamento, a condição
final para que ela aceitasse se casar. Nas primeiras horas do
matrimônio, os afetos frágeis que ligavam os recém-casados enfim se
rompem, dando lugar ao ódio.
Foto: autoria própria.
“Em meu peito cresceu a raiva que era dela, uma força minha e alheia que me encheu do prazer de perder-me. Desejei que aquela força se expandisse. Mas me dei conta de que também estava amedrontada. Só em seguida compreendi estar condenada a ser quietamente infeliz porque sou incapaz de reações violentas, porque as temo, prefiro ficar imóvel cultivando o rancor. Lila, não.” (Pág. 15)
Lila odeia Stefano por tê-la iludido, e a caminho da lua de mel, ele revela com detalhes a sua traição, assim como do pai e irmão de Lila, que também aceitaram se vender para os Solara. Ela enfim o vê como é, alguém movido unicamente por dinheiro. Já o ódio de Stefano é o ódio do patriarcado contra a mulher que se rebela. Lila grita, querendo acabar com o casamento naquele mesmo instante, mas logo apanha pela primeira vez, e é sempre com violência que Stefano lidará com ela dali para frente.
Naquelas primeiras horas, conforme conta mais tarde a Lenu, ela passa por uma mudança de perspectiva. Tendo deixado para trás todos os fatores que a pressionavam para aquele momento, até que finalmente se concretizou, ela percebe a situação absurda em que se encontra, e vemos traços de sua desmarginação (do que falarei ao final da última resenha da tetralogia). De repente, todas as qualidades de Lila parecem aprisionadas pelos abusos de Stefano, uma pessoa que ela já não reconhece, que a estupra, que a espanca, que se aproveita de sua inteligência para lucrar. Porém, a determinação, os mistérios de Lila e o ódio por aquele sobrenome que agora é também o seu são intensificados.
Quando voltam ao bairro, para o apartamento novo, com um conforto material incomum a suas origens, Lenu é a única a se comover por Lila diante dos hematomas em seu rosto. Para todos os outros, homens e mulheres, familiares ou não, a violência contra a mulher é normalizada, principalmente no caso de uma mulher como ela.
A princípio, Lila fica em casa, cozinhando e aproveitando seu acesso inédito ao dinheiro e a um telefone que usa para comprar coisas novas. Nessa fase, ela convida Lenu para estudar em sua casa, oportunidade aproveitada, pois Lenu já não suportava estudar na casa agitada da família. Lila às vezes a ajuda a aprender algumas matérias, como fazia antes de ficar noiva, e parece temer sua própria capacidade de aprendizado, a qual o rumo de sua vida a impede de utilizar, mesmo que sua mente continue a vagar por lugares que mesmo sua amiga não compreende.
No entanto, há coisas que Lenu começa a compreender. Um dia, Lila sugere que não quer engravidar, e sua demora para tal é motivo de chacota para Stefano no bairro. E aquilo que parecia um destino comum a todas as mulheres passa a se revelar mais complexo para Lenu diante de sua realidade (1). Acredito que nessa reflexão Lenu tem acesso a uma parte do sentimento de desmarginação que assola a outra, partindo da preocupação que a assola desde mais nova, de tornar-se uma cópia de sua mãe.
Lenu também passa a compreender melhor o problema das classes,
principalmente quando descobre que Nino tem uma namorada, Nadia, filha
de uma de suas professoras mais próximas, a Galiani. Lenu percebe na
garota, vinda de uma família rica e consolidada a gerações, “algo de
impalpável, mas fundamental, que ela demonstrava ter só de vê-la de
longe e que ou se tinha ou não se tinha, porque para possuir aquela
coisa não bastava aprender latim, grego ou filosofia, não servia nem
mesmo ter o dinheiro dos embutidos ou dos sapatos.” (P. 81)
““Era só uma questão de dinheiro, Lila. Hoje tudo mudou, você é muito mais bonita que a garota vestida de verde.” Mas pensei: não é verdade, estou mentindo para você. Havia algo de perverso na desigualdade, e agora eu compreendia. Algo que agia em profundidade, que escavava além do dinheiro. Não bastava o caixa das duas charcutarias nem o da fábrica de calçados ou da loja de sapatos para ocultar nossa origem. A própria Lila, ainda que tirasse mais dinheiro do caixa do que já pegava, ainda que faturasse milhões, trinta, até cinquenta, não conseguiria. Eu me dera conta disso e finalmente havia uma coisa que eu sabia melhor que ela, que eu aprendera não naquelas ruas, mas na entrada da escola, olhando a garota que vinha encontrar Nino. Ela era superior a nós, assim, sem querer. E isso era insuportável.” (P. 123)
A professora Galiani indica a Lenu jornais, que ela nunca tivera o costume de ler. Ela continua se esforçando para ser a melhor, para estar à altura de compreender as conversas políticas de Nino e seu grupo. Ao mesmo tempo, se afasta cada vez mais de Antonio, com quem finalmente termina depois de um tempo de procrastinação de quem não quer magoar o outro.
Após sua fase mais recolhida, Lila fica grávida pela primeira vez e resolve começar a trabalhar nas charcutarias do marido e na preparação da nova loja de calçados, parecendo esforçar-se para rejeitar a gravidez. Apesar disso, ela se recusa a desenhar novos sapatos, que para ela ficaram para trás, o que é compreensível considerando que não passava de uma pré-adolescente quando os projetou e que agora é uma jovem mulher que sofreu diversas desilusões. Ela continua fazendo de tudo para controlar o que acontece entre os estabelecimentos, impacientando seu irmão Rino, a cunhada, o marido e os Solara.
Quando chega a inauguração, alguém decide colocar na parede da loja a foto de Lila vestida de noiva, com seu olhar magnético, com os pés calçados pelos sapatos Cerullo. Mas ela não se deixa simplesmente ser exibida, e resolve criar, junto a Lenu, algo novo a partir da foto. É meu momento preferido do livro (2).
Lila cria uma obra de arte moderna que bem retrata a sua desmarginação,
sua fragmentação, as confusões do mundo que a atravessa. Expressa no
recorte de si mesma aquilo por que está passando, representado por seu
novo sobrenome, como explica a Lenu (3).
Lila sofre um aborto, e
as outras mulheres, a maioria das quais a odeiam, a acusam de ter
poderes de bruxa, assim como em outra ocasião, mais à frente, quando a
obra de Lila pega fogo sem que saibam exatamente como. É uma referência
emblemática, visto todas as ocasiões em que mulheres que se destacaram
dos papéis misóginos a elas conferidos foram taxadas como bruxas, e
queimadas.
Porém, Lila também é capaz de se adaptar e
aproveitar, como já fizera no passado, da realidade que se impõe, mesmo
que reprove a si mesma por isso. É o que acontece, por exemplo, quando
aprende a trapacear nos pesos, trabalhando na charcutaria, contribuindo
para um sistema que abomina (4).
Embora Lenu sempre acabe
revolvendo em torno de Lila, as tensões entre elas não desaparecem. E
Lenu começa a perceber que, ao contrário de si mesma - que apesar de
algumas distrações e inseguranças, tem um plano constante, uma vida que
progride lentamente mas de forma sólida em direção ao que acredita
querer (sair do bairro, ter um futuro diferente) -, as ações da outra
podem ser “fruto da desordem das ocasiões”, do desejo de não ficar para
trás de Lenu, que frequentemente é quem se vê nessa posição (5).
Em
certa ocasião, a professora Galiani convida Lenu para uma festa de
estudantes em sua casa, e Lenu convida a Lila, apesar da insegurança de
que ela seja vista ou com a grande atração que costuma causar ou com
desprezo por não estudar e já ser casada. O que ocorre é mais próximo da
segunda previsão.
Enquanto Lenu se diverte e tenta expor suas
opiniões em uma roda de conversa que inclui Nino e os filhos da
professora, mal se repara em Lila, que fica pelos cantos. É uma noite
importante para Lenu, mas se torna também um dos momentos em que Lila
mais a magoa, pois, na volta para casa, ela critica a afetação de Lenu
diante daquele grupo, a acusa de repetir o que os outros dizem (6). Lila
faz uma crítica válida aos discursos da elite. Mas o faz com maldade,
talvez com inveja de que Lenu, que tem a mesma origem que ela, poderia
fazer essas mesmas críticas se quisesse e se sair melhor do que os
demais, enquanto a própria Lila também se encontra casada com alguém
cuja família enriqueceu de forma ilegal e fazendo coisas que despreza.
Lenu
fica um tempo sem falar com Lila, até que esta recebe uma recomendação
médica para passar um tempo no litoral para ganhar força e engravidar, e
chama a amiga para acompanhá-la, com a promessa de lhe pagar, já que
Lenu estava trabalhando durante as férias. Lenu aceita, em parte por
nunca conseguir recusar a um pedido de Lila, em parte por ter esperança
de encontrar com Nino no litoral, perto de onde trabalhara alguns anos
antes. Além delas, vai também a mãe de Lila e sua cunhada, Pinuccia. Os
maridos vão visitá-las apenas aos finais de semana, então as três jovens
experimentam um período de incomum liberdade.
Depois de alguns
dias, elas passam a se encontrar com Nino e seu colega Bruno Soccavo
diariamente na praia. De início, Nino conversa quase que só com Lenu, e
ela fica feliz, embora respeite seu namoro com Nadia e não consiga falar
muito nas conversas, pois ele não abre muito espaço para tal. Porém,
Lila começa a se interessar por suas conversas e pega alguns livros que
Lenu levara. Assim, ela também passa a debater com Nino, articulando
suas ideias tanto a partir de suas vivências quanto de suas leituras
(7).
Não demora muito até que Nino lhe declare que sempre foi apaixonado por ela e que ela acabe se apaixonando também.
Esse
também é um período cruel para Lenu, que inicialmente estava
experimentando dias maravilhosos com as pessoas que mais amava, até
precisar ver essas mesmas pessoas se amando e deixando-a como companhia
para Bruno, que tenta se aproximar dela sem sucesso. No começo, antes de
se envolverem, Lila perguntara a Lenu se ainda gostava de Nino, e ela
negara, em sua insistência em manter os sentimentos para si. Mas ela
sofreu profundamente e em silêncio ouvindo a amiga falar do que sentia
por Nino.
No dia em que ela vai pela primeira vez dormir com
ele, Lenu recorre a uma ação desesperada, como fazia na infância para
não ficar para trás de Lila, e, ao encontrar com a família de Nino na
pensão onde trabalhara, encontra também Donato, que abusara dela anos
antes, e permite que ele a “desvirgine”, se aproveitando novamente da
vulnerabilidade de uma adolescente (8).
Quando retornam ao
bairro, Lenu passa a se dedicar mais à própria vida e ao último ano
escolar. Só ao final desse tempo é que ela volta a saber de Lila, que
está grávida, continua a se encontrar furtivamente com Nino e que iriam
fugir e começar uma vida juntos. Depois desse breve encontro, Lenu
começa a universidade em Pisa, onde também se torna uma estudante
promissora e onde namora um estudante e militante comunista, Franco
Mari. Lenu continua a desenvolver suas convicções e trajetória
intelectual, mas longe de Lila, de forma mais autônoma. Ainda assim,
continua a considerar muitos de seus próprios gestos influenciados pelo
que viveu com Lila e até mesmo a se subestimar por isso.
“Sim, é Lila que torna a escrita difícil. Minha vida me leva a imaginar como teria sido a dela se por acaso lhe houvesse cabido aquilo que me coube, que uso ela teria feito de minha sorte. E sua vida se apresenta continuamente na minha, nas palavras que pronunciei, dentro das quais há muitas vezes um eco das suas, naquele determinado gesto que é uma readaptação de um gesto dela, naquele meu a menos que é assim por um seu a mais, naquele meu a mais que é a caricatura de um seu a menos. Sem contar o que ela nunca me disse, mas me deixou intuir, o que eu não sabia e depois li em seus cadernos. Assim a narrativa dos fatos precisa acertar as contas com filtros, remissões, verdades parciais meias mentiras; do que resulta uma extenuante mensuração do tempo passado toda baseada no metro incerto das palavras.”
Mas é só nos últimos tempos de faculdade que Lenu volta a ter notícias dela. Descobre que antes de sair da casa de Stefano, quando se encontrava com Nino às escondidas, ele queria que ela largasse tudo enquanto ele mesmo, embora tivesse deixado de estudar por um período, não tinha nada a perder, era um homem solteiro. Que Lila voltara a desejar não só ele mas também aprender e ler coisas novas. Que depois de resolver finalmente deixar o marido sem que ninguém soubesse aonde ia - se vendo pela primeira vez rumo a uma aparente condição de estrutura que acabasse com sua desmarginação -, sua convivência com Nino durou apenas vinte e três dias. Ele logo começara a se impacientar com ela, com sua existência que não se resumia a amá-lo. Saira da casa por um dia para pensar no que fazer, e quando resolveu voltar, mesmo ainda incerto, foi espancado por Antonio, que tinha sido incumbido pelos Solara de encontrar Lila, e que o faz dizer que não voltará a encontrá-la. Nino de fato não volta mais.
Antonio passa o endereço de onde Lila estava para seus amigos do bairro, e Enzo, um de seus colegas de infância, a encontra e acompanha de volta à casa de Stefano, admitindo também que sempre gostara dela e que está à sua disposição se ela quisesse ir embora de vez.
Stefano a aceita de volta como se nada tivesse acontecido, em sua incapacidade de lidar com o fato de ter sido traído. Lila permanece até o nascimento e primeiros anos de seu filho Rino, mas Stefano se torna cada vez mais violento. Em uma ocasião, depois de anos que Lenu volta a encontrá-la num feriado, Lila lhe entrega uma caixa com os cadernos onde escrevia, para que ele não encontre, e por onde Lenu fica sabendo de muitos fatos relatados no livro, e os quais as impressionam com a força impressionante da escrita de Lila, que a inspiram ao mesmo tempo em que fazem com que volte a se subestimar, motivo pelo qual joga a caixa no rio Arno. No entanto, as palavras de Lila já estavam gravadas em sua memória.
Em seu último ano de universidade, Lenu se sente novamente insegura e descolada do ambiente. Porém, é o ano em que escreve seu primeiro livro e conhece Pietro Airota, filho de um professor importante e de família tradicional. Ela fica noiva, embora aos leitores pareça que não tenha chegado a realmente se apaixonar por ele.
Enquanto isso, Lila deixa Stefano definitivamente, indo morar com Enzo em outro bairro, onde começa a trabalhar na fábrica de embutidos de Bruno Soccavo. Nos primeiros meses, ou anos, ela e Enzo convivem apenas como amigos, ele respeita seu espaço. Lila também o ajuda nos estudos de linguagem de programação, numa época em que os computadores estavam começando a se desenvolver.
Já depois de formada, através de contatos da mãe de Pietro, o livro de Lenu chega à mão de editores e é publicado, realizando seu sonho de infância.
Mas logo Lila volta a se fazer presente nesse que parecia tão pessoal a
Lenu. Sua professora do primário morre, e deixa para ela materiais
antigos, inclusive de Lila, entre os quais se encontra A fada azul, um
livrinho que Lila escrevera na infância e que encantara a Lenu, quem o
entregara à professora para que lesse. Ela nunca o devolvera, mas agora
Lenu vê nas margens os comentários de sua aprovação. Para além disso,
Lenu reconhece aquela história como o “coração secreto” de seu livro.
Exagero ou constatação da verdade, é certo que de alguma forma Lila se
faria presente em sua escrita, sendo elas tão parte uma da outra.
Lenu
vai visitá-la, e como não a encontra em casa, vai até a fábrica, onde
encontra Lila desgastada pelo trabalho. Lenu lhe entrega A fada azul,
mas ela parece indiferente a sua produção infantil. Conversam
brevemente, mas Lenu se sente reconectada à amiga. Quando vai embora,
olha para trás uma última vez e vê Lila jogar A fada azul no fogo, como
que queimando todo o passado com que não mais se identifica.
Vejo
essa ação como um sinal de outra grande diferença entre as amigas. Lenu
olha para o passado como uma construção de quem veio a ser, já Lila,
apesar de sentir profundamente o efeito do passado sobre a atualidade,
parece temê-lo e buscar desfazer-se e refazer-se constantemente.
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***
(1) “A certo ponto, durante o percurso para casa, tornou a voltar à minha mente aquela mistura de sofrimento, espanto e desgosto que eu tinha visto em seu rosto. Por quê? Repensei no corpo em desordem da professora, no corpo desgovernado de Melina. Sem uma razão evidente, comecei a olhar com atenção para as mulheres ao longo da estrada. De repente me veio a impressão de ter vivido com uma espécie de limitação do olhar: como se só fosse capaz de focalizar nosso grupo de meninas, Ada, Gigliola, Carmela, Marisa, Pinuccia, Lila, a mim mesma, minhas colegas de escola, e jamais tivesse realmente notado o corpo de Melina, o de Giuseppina Peluso, o de Nunzia Cerullo, o de Maria Carracci. O único corpo de mulher que eu tinha examinado com crescente preocupação era a figura claudicante de minha mãe, e apenas por aquela imagem me sentira perseguida, ameaçada, temendo até agora que ela se impusesse de chofre à minha própria imagem. Naquela ocasião, ao contrário, vi nitidamente as mães de família do bairro velho. Eram nervosas, eram aquiescentes. Silenciavam de lábios cerrados e ombros curvos ou gritavam insultos terríveis aos filhos que as atormentavam. Arrastavam-se magérrimas, com as faces e os olhos encavados, ou com traseiros largos, tornozelos inchados, as sacolas de compra, os meninos pequenos que se agarravam às suas saias ou que queriam ser levados no colo. E, meu Deus, tinham dez, no máximo vinte anos a mais do que eu. No entanto pareciam ter perdido os atributos femininos aos quais nós, jovens, dávamos tanta importância e que púnhamos em evidência com as roupas, com a maquiagem.
Tinham sido consumidas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre se assemelhando, ou pelo cansaço ou pela chegada da velhice, pela doença. Quando essa transformação começava? Com o trabalho doméstico? Com as gestações? Com os espancamentos? Lila se deformaria como Nunzia? De seu rosto delicado despontaria Fernando, seu andar elegante se transmutaria nas passadas abertas e braços afastados do tronco, de Rino? E também meu corpo, um dia, cairia em escombros, deixando emergir não só o de minha mãe, mas ainda o do pai? E tudo o que eu estava aprendendo na escola se dissolveria, o bairro tornaria a prevalecer, as cadências, os modos, tudo se
confundiria numa lama escura, Anaximandro e meu pai, Folgóre e dom Achille, as valências e os pântanos, os aoristos, Hesíodo e a vulgaridade arrogante dos Solara, como de resto há milênios acontecia na cidade, sempre mais decomposta, sempre mais degradada?
Num instante percebi que, sem me dar conta, eu tinha interceptado os sentimentos de Lila e os estava somando aos meus. Era por isso que ela estampava aquela expressão, aquele mau humor? Acariciava a própria perna, os quadris, como uma espécie de adeus? Apalpava-se ao falar como se sentisse os confins de seu corpo assediados por Melina, por Giuseppina, e estivesse em pânico, nauseada? Tinha procurado nossos amigos por necessidade de reação?
Recordei seu olhar, ainda pequena, sobre Oliviero caída da cátedra como uma boneca em frangalhos. Recordei seu olhar sobre Melina comendo ao longo da estrada o sabão amolecido que acabara de comprar. Recordei-me de Lila enquanto narrava a nós, meninas, o homicídio, o sangue escorrendo na panela de cobre, e defendia que o assassino de dom Achille não era um homem, mas uma mulher, como se ela mesma tivesse visto e ouvido, na história que nos contava, a forma de um corpo feminino desfazer-se por força de ódio, por urgência de vingança ou de justiça, e perder sua constituição.” (P. 99)
(2) “Passamos os últimos dias de setembro trancadas na loja, nós duas e três operários. Foram horas magníficas de jogo, de invenção, de liberdade, que não nos acontecia daquela maneira, juntas, talvez desde a infância. Lila me arrastou para dentro de seu frenesi. Compramos cola, tintas, pincéis. Aplicamos com extrema precisão (ela era exigente) os recortes de cartolina preta. Traçamos contornos vermelhos ou azuis entre os restos da foto e as nuvens escuras que a devoravam. Lila sempre fora exímia com linhas e cores, mas ali fez algo mais, algo que, apesar de eu não saber expressar o que era, pouco a pouco me
fascinou. Quase tive a impressão de que ela houvesse arquitetado aquilo só para dar um arremate perfeito aos anos que se iniciaram com os desenhos dos sapatos, quando ela ainda era a menininha Lina Cerullo. E ainda hoje penso que muito do prazer daqueles dias tenha derivado justamente da anulação da sua, da nossa condição de vida, daquela capacidade que tínhamos de nos elevarmos acima de nós mesmas, de nos isolarmos na pura e simples realização daquela espécie de síntese visual. Esquecemo-nos de Antonio, de Nino, de Stefano, dos Solara, de meus problemas com os estudos, da gravidez dela, das tensões entre nós.
Suspendemos o tempo, isolamos o espaço, restou apenas o jogo da cola, das tesouras, das cartolinas, das cores: o jogo da invenção afinada.
Mas houve mais. De repente me voltou à memória o verbo usado por Michele: apagar. É provável, sim, probabilíssimo que as tiras pretas acabassem de fato por isolar os sapatos e torná-los mais visíveis; o jovem Solara não era estúpido, sabia olhar. Mas aos poucos, sempre mais intensamente, senti que não
era aquele o verdadeiro objetivo de nosso colar e colorir. Lila estava feliz e me arrastava cada vez mais com sua felicidade feroz, sobretudo porque descobrira num relance, talvez sem nem mesmo se dar conta, uma ocasião que lhe permitia representar a fúria contra si mesma, a irrupção, talvez pela primeira vez em sua vida, da necessidade — e aqui o verbo usado por Michele era apropriado — de apagar-se.
Hoje, à luz de tantos fatos que aconteceram em seguida, estou bastante segura de que as coisas se deram justamente assim. Com as cartolinas pretas, com os círculos verdes e arroxeados que Lila traçava em torno de certas partes de seu corpo, com as linhas vermelho-sangue com que se retalhava e dizia se retalhar, realizou a própria autodestruição em imagem, oferecendo-a aos olhos de todos no espaço comprado pelos Solara para expor e vender os seus sapatos.”
(P. 120)
(3) “E até a fórmula italiana de sua nova designação, me disse, a princípio a impressionara pouco: Raffaella Cerullo em Carracci. Nada de exaltante, nada de grave. A princípio aquele em Carracci a ocupara não mais que um exercício de análise lógica, os mesmos com que a professora Oliviero nos
perseguira na escola fundamental. O que era? Um complemento de estado em lugar? Significava que já não residia com os pais, mas com Stefano? Significava que a casa nova onde ela passaria a morar teria na porta uma placa de latão dizendo Carracci? Significava que, se eu lhe escrevesse, não deveria mais
remeter a correspondência a Raffaella Cerullo, mas a Raffaella Carracci? Significava que, desse Raffaella Cerullo em Carracci, logo desapareceria, no uso cotidiano, o Cerullo em e ela mesma se definiria, assinaria apenas Raffaella Carracci, e os filhos precisariam fazer um esforço de memória para se lembrar do sobrenome da mãe, e os netos ignorariam completamente o sobrenome da avó?
Sim. Um hábito. Tudo dentro da norma, pois. Mas Lila, como era seu costume, não parara nesse ponto e logo passou adiante. Enquanto trabalhávamos com pincéis e tintas, me contou que começara a ver naquela fórmula um complemento de direção a um lugar, como se Cerullo em Carracci fosse uma espécie de Cerullo vai à casa de Carracci, se precipita em, é absorvida por, se dissolve em. E, a partir da brusca indicação de Silvio Solara para padrinho de casamento, a partir da entrada de Marcello Solara no salão do restaurante calçando nada menos que o par de sapatos que Stefano fizera acreditar se tratar de algo sagrado como uma relíquia, a partir de sua viagem de núpcias e das porradas até chegar àquele arraigar-se, no vazio que sentia dentro de si, de uma coisa viva e desejada por Stefano, ela havia sido arrastada em crescendo por uma sensação insuportável, uma força cada vez mais premente que a estava aniquilando. Aquela impressão se acentuara e acabara por prevalecer.
Subjugada, Raffaella Cerullo perdera a forma e se dissolvera dentro do perfil de Stefano, tornando-se uma emanação subalterna dele: a senhora Carracci. Foi então que comecei a ver no painel os traços do que ela dizia. “É uma coisa ainda em ato”, disse num sussurro. E, enquanto colávamos cartolina, íamos distribuindo as cores. Mas o que estávamos fazendo de fato, em que eu a estava ajudando?”
(P. 121)
(4) “Uma vez deixou a gaveta aberta, fixando o dinheiro. Disse de péssimo humor:
“Este aqui quem ganhou fui eu, com o esforço do meu trabalho e do de Carmen. Mas nada aqui dentro é meu, Lenu, tudo foi feito com o dinheiro de Stefano. E Stefano acumulou dinheiro partindo do dinheiro do pai dele. Sem o que dom Achille colocou debaixo do colchão, agindo no mercado negro e fazendo
agiotagem, hoje não teríamos isto nem a fábrica de calçados. Não só. Stefano, Rino e meu pai não teriam vendido um sapato sequer sem a grana e sem os contatos da família Solara, eles também agiotas. Percebe onde eu fui me meter?”.
Eu percebia, mas não compreendia de que adiantavam aqueles raciocínios.
“São águas passadas”, disse a ela, e recordei as conclusões a que ela mesma chegara quando se tornou noiva de Stefano. “Isso que você está dizendo ficou para trás, nós somos outra coisa.”
Mas ela, que justamente tinha inventado aquela teoria, mostrou-se pouco convencida. Respondeu — e me lembro perfeitamente da frase, dita em dialeto: “Não gosto mais do que eu fiz e do que estou fazendo.”
(P. 132)
(5) “Por isso faltavam todos os motivos que tinham acendido a fantasia dos sapatos, o terreno em que germinara havia secado. Foi sobretudo uma maneira — disse de repente — de demonstrar a você que eu
sabia fazer bem as coisas, apesar de não frequentar mais a escola. Depois sorriu nervosa, lançando-me um olhar oblíquo para captar minha reação.
Não respondi, experimentei uma forte emoção que me embargou. Lila era mesmo assim? Será que não tinha minha teimosa aplicação? Tirava de si pensamentos, sapatos, palavras escritas e faladas, planos complicados, fúrias e invenções só para mostrar a mim algo de si? Perdido aquele motivo, se dispersava? Nunca saberia refazer nem mesmo aquilo que fizemos com sua fotografia de noiva? Tudo nela seria fruto da desordem das ocasiões?”
(...)
Me senti incomodada. Ela mudava num instante, eu já não sabia o que pretendia. Por que agora me falava daquela maneira? Não entendia se ela o fazia de caso pensado ou se as palavras saíam de sua boca sem querer, num fluxo impetuoso em que a intenção de reforçar nossos laços — intenção verdadeira — era logo varrida por uma necessidade igualmente verdadeira de negar-lhe uma especificidade: veja, me comporto com Stefano como com você, faço assim com qualquer um, faço o bem e faço o mal, o bonito e o feio. Entrelaçou as mãos longas e finas, apertou forte, perguntou:
“Ouviu que Gigliola anda dizendo que a foto pegou fogo sozinha?”.
“É uma tolice, Gigliola invocou com você.”
Deu uma risadinha que pareceu um estalo, algo nela se retorceu muito bruscamente.
“Sinto uma dor aqui, atrás dos olhos, há algo que pressiona. Está vendo essas facas? São muito afiadas, acabei de buscá-las do amolador. Enquanto corto o salame, penso em quanto sangue há no corpo das pessoas. Se você põe muita matéria nas coisas, elas se rompem. Ou então lançam centelhas e queimam.
Estou
contente de que a foto com o vestido de noiva tenha queimado. Era
preciso queimar também o casamento, a loja, os sapatos, os Solara,
tudo.”
(P. 141)
(6) “Não há uma coisa lá dentro, um objeto, um quadro, que eles tenham conquistado por si. Os móveis são de cem anos atrás. A casa tem pelo menos trezentos anos. Os livros, sim, alguns são novos, mas outros são velhíssimos, têm tanta poeira que não são folheados há séculos, velharias de direito, de história, de ciências, de política. Naquela casa os pais, os avós e os bisavós leram e estudaram. Há centenas de anos atuam no mínimo como advogados, médicos, professores. Por isso falam todos assim, por isso se vestem e comem e se movem assim e assado. E o fazem porque nasceram ali. Mas não têm na cabeça nenhum pensamento próprio, que se esforçaram em pensar. Sabem tudo e não sabem nada. Beijou o marido no pescoço, alisou-lhe o cabelo com a ponta dos dedos. Se você estivesse lá, Sté, veria apenas papagaios fazendo currupaco, currupaco. Não se entendia uma única palavra do que diziam, nem eles mesmos se entendiam entre si. Você sabe o que é a oea, o que é abertura à esquerda? Da próxima vez não me leve, Lenu, leve Pasquale; aí você vai ver como ele os enquadra num piscar de olhos. Chimpanzés que mijam e cagam no vaso, não no chão, e por isso se acham grandes coisas, dizendo que sabem o que deve ser feito na China, na Albânia, na França e no Katanga. E você também, Lena, preciso lhe dizer: fique esperta, você está se transformando na papagaia dos papagaios. Virou-se para o marido, rindo. Você tinha que estar lá para ouvir, lhe disse. Falava com uma vozinha, piu-piu, piu-piu. Pode mostrar a Stefano como você fala com eles? Você e o filho de Sarratore: idênticos. A brigada mundial da paz; nós temos as capacidades técnicas; a fome, a guerra. Mas será que você faz tanto esforço na escola só para depois repetir as coisas que aquele lá diz? Quem sabe resolver os problemas trabalha pela paz. Bravo! Lembra como o filho de Sarratore sabia resolver os problemas? Lembra, sim, e ainda vai na dele? Também você quer ser a marionete do bairro, que representa para ser recebida na casa daquela gente? Querem nos deixar em nossa merda, quebrando a cabeça sozinhos, enquanto vocês fazem currupaco, currupaco, a fome, a guerra, a classe operária, a paz?”
(P. 160)
(7) “Houve ainda outro caso em que Lila manifestou sua discordância com boas maneiras e num italiano educado. Eu me sentia cada vez mais propensa às teses que teorizavam intervenções competentes que, se realizadas a tempo, acabariam resolvendo os problemas, eliminando as injustiças e prevenindo os conflitos.
Tinha rapidamente aprendido aquele esquema de raciocínio — nisso sempre fui boa — e o aplicava toda vez que Nino sacava questões sobre as quais havia lido aqui e ali: colonialismo, neocolonialismo, África. Mas numa tarde Lila disse devagar a ele que não havia nada que pudesse evitar o conflito entre ricos e
pobres.
“Por quê?”.
“Os que estão em baixo querem ir para cima, os que estão em cima querem permanecer em cima, e de um modo ou de outro sempre se acaba com cusparadas e chutes na cara.”
“Justamente por isso o ponto central é resolver os problemas antes que se chegue à violência.”
“E como? Levando todos para cima, levando todos para baixo?”
“Encontrando um ponto de equilíbrio entre as classes.”
“Um ponto onde? Os de baixo se encontram a meio caminho com os de cima?”
“Digamos que sim.”
“E os de cima vão descer de bom grado? E os de baixo vão renunciar a subir mais alto?”
“Caso se trabalhe para resolver bem essas questões, sim. Não acredita?”
“Não. As classes não jogam trunfo, mas lutam, e a luta é até a última gota de sangue.”
“É o que pensa Pasquale”, eu disse.
“Agora eu também penso assim”, respondeu tranquila.”
(P. 207)
(8) “Fiz toda a descida escura. Agora havia uma lua entre nuvens ralas, de bordas claras, e a noite estava perfumadíssima, se ouvia o rumor hipnótico das ondas. Na praia tirei os sapatos, a areia era fria, uma luz cinza-celeste se alongava até o mar e depois se expandia por sua planície trêmula. Pensei: sim, Lila tem razão, a beleza das coisas é um truque, o céu é o trono do medo; estou viva, agora, aqui, a dez passos da água, e isso não é nada belo, é aterrorizante; faço parte, com esta praia, com o mar, com a agitação de todas as formas animais, do terror universal; neste momento sou a partícula infinitesimal por meio da qual o assombro de cada coisa toma consciência de si; eu; eu, que escuto o rumor do mar, que sinto a umidade e a areia fria; eu, que imagino Ischia inteira, os corpos enlaçados de Nino e Lila, Stefano dormindo sozinho na casa nova e já não tão nova, as fúrias que favorecem a felicidade de hoje para alimentar a violência de amanhã. Ah, é verdade, tenho muito medo e por isso torço para que tudo acabe logo, que as figuras dos íncubos me devorem a alma. Desejo que dessa escuridão irrompam matilhas de cães raivosos, víboras, escorpiões, enormes serpentes marinhas. Desejo que, enquanto estou sentada aqui, na beira do mar, cheguem do meio da noite assassinos que me estraçalhem o corpo. Sim, sim, que eu seja punida por minha inadequação, que me aconteça o pior, algo de tão devastador que me impeça de enfrentar esta noite, amanhã, as horas e os dias que virão reconfirmando com provas cada vez mais esmagadoras minha constituição inepta. Tive pensamentos assim, pensamentos exaltados de menina humilhada. Me abandonei a eles por não sei quanto tempo. Depois alguém disse: “Lena”, e me tocou o ombro com dedos frios. Estremeci, meu coração se contraiu tão gelado que, quando me virei num instante e reconheci Donato Sarratore, a respiração me explodiu da garganta como o gole de uma poção mágica, dessas que nos poemas devolvem a força e a urgência de viver.”
(P. 289)