História de quem foge e de quem fica - Elena Ferrante
História de quem foge e de quem fica, a começar pelo título, acentua o
peso dos deslocamentos sobre Lila e Lenu. Diferente do último volume,
porém, esse se volta principalmente para os desdobramentos da história
de Lenu após se formar e publicar seu primeiro romance, embora Lila seja
uma constante em sua vida, mesmo que à distância.
Elena começa a
ver todos os esforços que plantou ao longo de seus estudos sendo
reconhecidos através de seu primeiro livro. Essa realização a leva um
pouco mais além de sua origem. Para os leitores do bairro, a obra parece
se resumir às páginas onde sua protagonista perde a virgindade, o que
faz com que Lenu seja vista por muitas pessoas com certa desconfiança e
desrespeito. Paralelamente, em sua turnê de divulgação da obra, ela
constrói gradualmente sua habilidade de falar em público sobre seus
significados, que ela mesma ainda está descobrindo.
“Só no fim falei da necessidade de narrar com franqueza qualquer experiência humana, até mesmo — sublinhei — o que parece impronunciável e por isso mesmo calamos a nós mesmas.” (P. 55)
É em uma dessas ocasiões que termina História do novo sobrenome, quando surge na plateia Nino, amor de infância de Lenu e ex-amante de Lila. Embora noiva de Pietro, outro jovem acadêmico, Lenu percebe que seus sentimentos por Nino continuavam guardados, e que ela facilmente trairia o noivo com ele. Mas Nino escapa novamente, como ela sempre o observara fazer, desde a infância, como uma promessa de outra vida possível, enquanto ela não tem coragem o suficiente de tomar a iniciativa de ir com ele. No entanto, como também já acontecera com frequência, em paralelo a seu amor, Lenu se incomoda com algumas palavras dele sobre Lila, lembrando-se de como ela deixara tudo por ele, que a abandonara logo (1).
Elena também se vê defasada em seus conhecimentos políticos, e busca se atualizar e se envolver nos movimentos. A palavra que circula é a revolução, Lenu a encontra nas assembleias de estudantes por onde acaba passando. Numa delas, encontra seu ex-namorado da universidade, Franco, com sua cunhada Mariarosa, e uma amiga deles, Silvia, que lhe chama a atenção entre os estudantes, numa cena bonita e potente (2).
Lenu dorme na casa deles naquela noite, onde acontecem alguns eventos importantes. Está presente também um jovem pintor, que é o principal a debater com Franco, enquanto Mariarosa e Silvia parecem mais apoiar um ou outro do que expor suas próprias ideias. A certa altura, Lenu é quem toma a palavra, querendo demonstrar como tinha amadurecido e aprendido desde a última vez que vira Franco. Cada vez mais ao longo do livro ela se sentirá capaz de se expor dessa forma, embora com muitos conflitos internos e externos.
Também é nessa noite que ela descobre que o bebê de Silvia, a quem ela ajuda em seus cuidados, sentindo um grande afeto pela criança, é filho de Nino, que a deixou como fizera com Lila (3). Lenu percebe cada vez mais nitidamente quem é esse homem que ama, que dizia não querer ser como seu pai já sendo como ele (4). Apesar disso, ela também sabe que não consegue deixar de amá-lo.
Por fim, nessa mesma noite o pintor tenta dormir com Elena, mas ela recusa veementemente, apesar de suas reclamações. Ela se sente como se , segundo os olhos alheios, devesse estar sempre disponível pelo que escrevera em seu livro, por sua condição de mulher moderna. Lenu começa a ver como o patriarcado em suas diversas manifestações e violências se estende para além do bairro ou de Nápoles.
“De repente me voltou à memória o episódio com Donato Sarratore. Não tanto a noite na praia em Ischia, a que eu transformara em cena romanesca, mas a vez em que ele aparecera na cozinha de Nella quando eu tinha acabado de deitar e me beijara, me bolinara, provocando em mim um fluxo de prazer contra minha própria vontade. Entre a menina de então, assustada, estarrecida, e a mulher atacada no elevador, a mulher que sofrera aquele assédio, agora, havia algum nexo? O cultíssimo Tarratano, amigo de Adele, e o artista venezuelano, Juan, eram da mesma estirpe do pai de Nino, ferroviário, poetastro, pena de aluguel?” (P. 74)
Entre suas viagens, Elena continua a morar com sua família até se casar. É nesse período que, uma noite, Enzo e Pasquale, seus amigos de infância, vão chamá-la a pedido de Lila. Como sempre, Lenu vai a seu encontro imediatamente.
Lila está mal, doente física e mentalmente, e a faz prometer que ficará com seu filho se algo lhe acontecer. Lenu promete, relutantemente, e passa a ouvir o relato doloroso da amiga sobre o tempo em que vinha trabalhando na fábrica de embutidos de Bruno Soccavo.
Lila lhe relata as condições de trabalho insalubres, os assédios que sofre por Bruno e por outros funcionários, e como enfrenta a situação a seu modo combativo e feroz, apesar da fraqueza interna e externa. Conta como Pasquale levou Enzo e ela a participar do sindicato de trabalhadores, onde ouvia, incomodada, estudantes burgueses, como Nadia, a filha da professora Galiani, falando em nome da classe operária, e onde ela mesma resolveu falar uma vez sobre sua própria realidade (5).
A fala de Lila, com sua impressionante capacidade narrativa, fora transformada em panfleto sem que soubesse, gerando-lhe ameaças por parte do patrão. Ela vai se resolver com Nadia, que estava com Pasquale, e Lila é gradualmente convencida a agir como uma espécie de líder dos trabalhadores de sua fábrica, para que entregue uma lista de reivindicações ao patrão sob a ameaça de ser prejudicado pelas inspeções. Paralelamente, a violência entre fascistas e comunistas se acentua, e Lila piora cada vez mais, passando mal com frequência. Em uma dessas ocasiões, o irmão de Nadia, médico, aponta a possibilidade de ela ter um sopro no coração (6).
Durante todo esse tempo, Lila e o filho continuam vivendo com Enzo, que também trabalha numa fábrica e estuda programação à noite. Embora gostando de Lila, ele respeita sua vontade de não dormirem juntos, e cuida do filho dela como se fosse seu. Eles estudam juntos, ela sempre com sua capacidade de aprender rápido. Lila diz amá-lo como a um irmão, vendo-o como um ponto seguro entre as tantas angústias de sua vida (7).
Em seu relato a Lenu, ela também relata como sua situação de mulher trabalhadora parece descolada do movimento dos operários como um todo (8). Falo mais sobre isso mais à frente.
Lenu se comove com tudo o que a amiga tem passado, com seu estado frágil e doente, pensando que ela poderia estar na mesma situação se também não tivesse tido a oportunidade de continuar estudando. E ela, que sempre se sentira abaixo de Lila, passa a cuidar dela, a interferir em sua vida um pouco como a outra tantas vezes fizera com ela. É nesses momentos de maior vulnerabilidade que Lila se mostra também dependente da amizade de Lenu, e quando demonstra maior afeto por ela em palavras.
““Você é forte”, respondeu ela para minha surpresa, “eu nunca fui forte. Você, quanto mais se sente verdadeira e está bem, mais se afasta. Eu, só de atravessar o túnel do estradão, já me assusto. Lembra quando tentamos ir até o mar, mas começou a chover? Quem de nós duas queria continuar, seguir em frente, e quem resolveu dar meia-volta: eu ou você?”” (P. 169)
Lila deixa de trabalhar e Lenu escreve um artigo denunciando a situação da fábrica, utilizando suas boas relações com a família poderosa do noivo em prol da amiga. Lila e o filho, junto a Enzo, voltam a morar em seu bairro de origem. Lenu dá um jeito também de arranjar uma oportunidade de trabalho para Enzo.
Ela também busca proteger a amiga dos ataques de Michele Solara, que continua expandindo o poder da família no bairro e além, e obcecado por Lila. Michele é outra figura que encarna o patriarcado na obra, sua visão objetificante das mulheres, até mesmo de Lila, embora de uma forma diferente, mais como se ela fosse uma entidade, com o brilhantismo que lhe é característico (9).
Lenu também leva Lila a diversos médicos, e descobrem que além da subnutrição e do cansaço, ela não tem nada de grave. Elas também vão juntas pedir pílulas anticoncepcionais, que ainda não eram totalmente legalizadas, Lenu porque quer escrever outro livro antes de engravidar, Lila porque não exclui a possibilidade de ficar com Enzo. Pela primeira vez elas conversam sobre sexo, que Lila admite nunca ter lhe dado prazer, diferente de Lenu, embora a outra não acredite. É interessante como, assim como Lenu está sempre desconfiando de Lila de alguma forma, Lila faz o mesmo com Lenu, duvidando de experiências como essa.
Apesar da aparente proximidade, Lenu se mantém em certa atitude defensiva em relação a Lila, que muitas vezes continua a confundi-la com suas aparentes contradições. Uma dessas vezes acontece quando elas visitam a professora Galiani, quem Lenu não via há tempos, mas que parece prestar mais atenção a Lila e ao panfleto originado de sua fala no sindicado do que a Lenu e seu livro. Lila responde a sua conversa, e Lenu sente-se humilhada, mais uma vez como uma sombra. Quando saem, Lila fala mal da professora, condenando sua atitude com Lenu, mas Lenu não sabe se pode confiar no que lhe diz. A ambivalência de sua relação vem à tona novamente. Algo semelhante acontece quando Pasquale e Nadia as condenam porque Lenu se utilizou de suas boas relações para poupar a amiga, sem servir para mudar a realidade dos trabalhadores de fato. Lila concorda com eles, em sua honestidade cortante, magoando Lenu e sua entrega ao bem-estar de Lila.
Lenu volta a se preocupar em estar sendo muito absorvida pela vida da outra, e se sente perdida por sua ação benévola ser vista quase que como uma traição (10).
Lenu se casa com Pietro sem grande paixão, e vão viver em Florença, onde ele leciona. Apesar de seus planos de escrever outro livro antes da maternidade, ela engravida logo após o casamento.
Desde o início da convivência, Pietro mostra-se dedicado quase que exclusivamente a seus estudos e trabalhos, pouco interessado na carreira de Lenu ou até mesmo em conversar com ela, a quem cabe o cuidado da casa e das filhas que virão. Lenu se vê cada vez mais isolada do convívio social, e algum tempo após o nascimento da primeira filha, que lhe dá muito trabalho quando bebê, passa por um período de flerte com os colegas de Pietro que vão jantar em sua casa (11).
Seu contato com Lila permanece apenas por telefone por muitos anos, cheio de tensões. A característica evasiva de Lila se acentua, mesmo quando Lenu deseja conversar com ela como faziam quando novinhas, querendo saber sua opinião, sua visão de mundo sobre algum assunto, ela fala apenas das histórias do bairro (12) (13).
Lila e Enzo passam a viver como um casal e a prosperar em seus empregos como programadores. Lila fala sobre a ocasião de sua própria gravidez como um período árduo, já Lenu sente-se forte e contente na gestação de suas filhas, Dede e Elsa. Lila lhe narra os acontecimentos do bairro, e Lenu se vê cada vez mais uma espectadora, as palavras da amiga continuando a inspirá-la e moldá-la. Com muito custo, ela escreve seu segundo livro, baseado na vida no bairro onde cresceu, mas tanto sua sogra quanto Lila não gostam da narrativa, e Lenu não chega a submetê-lo à avaliação da editora.
O envolvimento político de Lenu passa a ser mais voltado ao movimento feminista. Ela tenta não se render apenas ao papel de mãe e dona de casa, ao mesmo tempo em que não encontra apoio do marido nem de amigos próximos que lhe ajudem nos trabalhos do dia a dia para que possa ter tempo e disposição de explorar suas dúvidas, escrever, estudar, fazer contatos. De certa forma, Lenu volta a um aprisionamento que sentia em sua origem, mas um aprisionamento cercado de boas condições materiais, de uma família prestigiosa, do que aparentava ser o sucesso para uma mulher, de acordo com os homens.
Assim, ela resiste como pode, levando as filhas a manifestações e frequentando a casa da cunhada, onde acontecem encontros feministas. No entanto, percebe que durante toda a sua vida tentou se moldar não só a Lila, mas também a padrões masculinos; que ama suas filhas, embora não ame ser mãe; que precisa encontrar quem ela realmente é (14).
Uma vez, Lenu e família vão visitar seus parentes no bairro. Sua irmã mais nova fora viver com Marcello Solara, e Lenu teme por ela. No entanto, Lila também passara a trabalhar para Michele Solara, e Lenu se indigna. Depois de um almoço caótico em que estão presentes a família de Lenu, de Lila e dos Solara, no qual Michele anuncia sua parceria com Lila e em que paira um certo desdém pela carreira de Lenu, que já não diz respeito a eles, elas voltam a conversar brevemente. Lenu se dá conta que deve se desvencilhar da dependência do que Lila faz ou deixa de fazer, e amá-la como é.
“Transformar. Esse era um verbo que sempre me obcecara, mas me dei conta disso pela primeira vez somente naquela ocasião. Eu queria me transformar, embora nunca tenha sabido em quê. E tinha me transformado, isso era certo, mas sem um objeto, sem uma verdadeira paixão, sem uma ambição determinada. Tinha querido me transformar em algo — aí está o ponto — só porque temia que Lila se transformasse em sabe-se lá quem, e eu ficasse para trás. Minha transformação era uma transformação dentro de seu rastro. Precisava recomeçar a me transformar, mas para mim, como adulta, fora dela.” (P. 342)
Lenu começa a escrever sobre tudo o que vinha pensando, vivendo e estudando sobre a construção das mulheres pelos homens, a começar pela literatura em que tantos homens inventaram um ideal de mulher feita para agradá-los, para ser uma versão feminina de si (15).
Além disso, uma pessoa volta a sua vida para virá-la de cabeça para baixo, Nino Sarratore, que também era professor de uma universidade em Nápoles, onde morava com a esposa e o filho pequeno, mas que passa a frequentar também Florença. Ele e Pietro estabelecem uma amizade, e Nino começa a visitá-los. Lenu percebe que continua apaixonada por ele. Nino continua representando algo diferente, um modelo aparentemente diferente de masculinidade, em sua forma de falar das mulheres, de incentivá-la a escrever, de ler e elogiar seu novo manuscrito, de ajudá-las nas tarefas domésticas e brincar com suas filhas.
Depois de um período de hospedagem na casa de Elena, ela e Nino se envolvem pela primeira vez, e passam a ser amantes. Nino a pressiona a deixar Pietro e viajar com ele para um congresso na França, embora ele relute em deixar a esposa, que alega ter problemas mentais. Eles brigam, Lenu não quer cair numa armadilha e se moldar novamente conforme um homem, ao mesmo tempo em que deseja mais que tudo estar com Nino. Ainda indecisa, ela conta a Pietro, que já desconfiava, e termina com ele.
No fim, Nino diz que também se separou da esposa, e eles viajam juntos. Antes, Lenu recebe um telefonema de Lila, que a reprova pelo que está fazendo, principalmente porque tinha passado pela mesma situação com o próprio Nino. Porém, pela primeira vez, Lenu acredita estar fazendo o que realmente quer, e acredita que ele realmente a ama, depois de tantos anos.
Apesar de muitas atitudes de Nino nos indicarem que ele não é confiável, a narração de Lenu nos leva a tentar acreditar nele, e que ela finalmente terá o destino que desejava, um relacionamento com o homem que sempre amou e que a apoia em sua carreira, inclusive seu novo livro que será lançado tanto na França quanto na Itália. Na última cena do livro, em que eles estão no avião, sendo a primeira viagem desse tipo para Lenu, pela primeira vez ela não vê Nino ir embora com a promessa de uma vida que ela gostaria de viver, dessa vez ela está prestes a viver essa promessa. Dessa vez, ela tem quase trinta anos e sente-se mais capaz de tomar as próprias decisões.
História de quem foge de quem fica aprofunda ainda mais as questões da mulher presentes na tetralogia, mostrando a abrangência e a complexidade do patriarcado, que se fazia na violência do bairro, nos movimentos de trabalhadores, nos círculos intelectuais por onde Elena passa a transitar, e em sua própria casa, tão diferente da casa onde cresceu. Mesmo nos rumos diferentes que tomam suas vidas, Lila e Lenu sabem o que é ser mulher nessa sociedade em transformação, que, no entanto, para transformar-se deveria também olhar para as intersecções entre as opressões sofridas por todas as minorias.
A experiência das duas mostra também a complexidade de, aos vinte e poucos anos, ter que lidar com as próprias questões humanas, amores e descobertas, enquanto se sobrevive às exigências sociais, se definem como sujeitos políticos, enquanto mães. E como, apesar de tudo, as decisões de uma afetam a outra.
Elena começa a se dar conta, ao expandir-se pelo mundo através de seus livros, viagens e experiências, que os problemas que presenciou no bairro, e dos quais quis fugir em sua infância e adolescência, na verdade são problemas de todo o mundo.
“Enfim, cada ano me parecia pior. Naquele período de chuvas, a cidade estava mais uma vez colapsada, um prédio inteiro pendera de lado como uma pessoa que se apoia no braço carcomido de uma velha poltrona e o braço cede. Mortos, feridos. E gritos, massacres, bombas caseiras. Parecia que a cidade gestava nas vísceras uma fúria que não conseguia extravasar e por isso mesmo a corroía, ou irrompia em pústulas epidérmicas, inchadas de veneno contra todos, crianças, adultos, velhos, gente de outras cidades, americanos da Otan, turistas de qualquer nacionalidade, os próprios napolitanos. Como era possível resistir naquele lugar de desordem e perigo, na periferia, no centro, nas colinas, sob o Vesúvio? Que impressão horrível me causara San Giovanni a Teduccio, a viagem para chegar até lá. Que impressão horrível me deu a fábrica em que Lila trabalhava, e a própria Lila, Lila com o filho pequeno, Lila que, num edifício miserável, vivia com Enzo embora não dormissem juntos. (...) Em vez disso, ir embora. Escapar definitivamente, para longe da vida que tínhamos experimentado desde o nascimento. Fixar-se em territórios bem organizados, onde realmente tudo era possível. E de fato foi o que eu fiz. Mas só para descobrir, nas décadas seguintes, que eu tinha me enganado, que se tratava de uma corrente com anéis cada vez maiores: o bairro remetia à cidade, a cidade, à Itália, a Itália, à Europa, a Europa, a todo o planeta. E hoje eu vejo assim: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é o globo terrestre, é o universo, ou os universos. E a habilidade consiste em ocultar e esconder para si o real estado das coisas.” (P. 17 - 18)
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***
(1) “Percebi quanto aquelas palavras tinham sido desagradáveis, eu o
deveria ter censurado. Desse sexo errado — deveria ter dito a ele —, de
uma experiência sobre a qual você agora expressa um julgamento negativo,
nasceu um filho, o pequeno Gennaro, que é muito inteligente: não é nada
bonito que você fale assim, a questão não é redutível a quem tem
problemas e a quem não tem, Lila se arruinou por você. E decidi: quando
me livrar de Adele e do amigo dela, quando ele me acompanhar até o
hotel, retomarei a conversa e lhe direi tudo.” (P. 31)
(2)
“Logo me chamou a atenção uma garota muito bonita, de traços delicados,
cabelos pretíssimos e longos sobre os ombros, com certeza mais nova que
eu. Depois que a vi não consegui tirar os olhos dela. Estava em pé no
meio de jovens muito combativos, e atrás dela, como um guarda-costas, um
homem moreno de seus trinta anos, fumando um charuto. O que a
distinguia naquele ambiente, além da beleza, era que trazia nos braços
um menino de poucos meses e o amamentava, enquanto seguia atentamente o
conflito em ato, às vezes gritando também. Quando o menino, uma mancha
azul com perninhas e pezinhos descobertos de uma cor avermelhada,
descolava a boca do mamilo, ela não recolocava o seio no sutiã, mas
continuava assim, exposta, a camisa branca desabotoada, o peito túrgido,
de cenho franzido, a boca semicerrada, até que se dava conta de que o
filho já não estava mamando e, mecanicamente, tentava fazê-lo voltar.
Aquela
garota me perturbou. Na sala barulhenta e carregada de fumaça, ela era
um ícone de maternidade fora dos esquemas. Era mais nova que eu, tinha
um aspecto fino, a responsabilidade de um filho. Mas parecia empenhada
sobretudo em rejeitar os traços da jovem mulher placidamente absorta nos
cuidados com o filho. Gritava, gesticulava, pedia a palavra, ria de
raiva, apontava alguém com desprezo. E no entanto o filho era parte
dela, buscava seu peito, o perdia. Juntos compunham uma imagem trêmula,
em risco, prestes a despedaçar-se como se pintada em vidro: o menino
cairia de seus braços ou algo bateria em sua cabeça, um cotovelo, um
gesto descontrolado. Fiquei alegre quando de repente Mariarosa surgiu ao
seu lado. Lá estava ela, finalmente. Como era viva, como era radiante e
cordial: me pareceu muito íntima da jovem mãe. Agitei uma mão, não me
viu. Falou algo no ouvido da garota, desapareceu, reapareceu entre os
que se empurravam em torno da cátedra. Nesse meio-tempo, de uma porta
lateral, irrompeu um grupinho que, apenas com sua presença, acalmou um
pouco os ânimos. Mariarosa fez um sinal, esperou um aceno em resposta,
segurou o megafone e disse poucas palavras que aquietaram
definitivamente a sala lotada. Naquela altura, por alguns segundos, tive
a impressão de que Milão, as tensões daquele período, minha própria
excitação tivessem a força de permitir que as sombras que eu trazia na
cabeça evadissem.” (P. 61)
(3) ““Um homem, exceto nos momentos
de loucura, em que você está apaixonada e ele te penetra, fica sempre
de fora. Por isso, mais tarde, quando você deixa de amá-lo, só de pensar
que você já gostou dele lhe dá rancor. Ele gostou de mim, eu gostei
dele, fim. Quanto a mim, várias vezes ao dia me acontece de gostar de
alguém. Você não? Durante pouco tempo, depois passa. Só o menino fica, é
uma parte de você; já o pai era um estranho e volta a ser um estranho.
Nem mesmo o nome tem mais o som de antigamente. Nino, eu dizia, e só
fazia repeti-lo mentalmente assim que acordava, era uma palavra mágica.
Agora, no entanto, é um som que me traz tristeza.”” (P. 77)
(4)
“Somente no trem, durante a longa viagem até Nápoles, assimilei aquela
segunda paternidade de Nino. Um cinza esquálido se estendeu de Silvia a
Lila, de Mirko a Gennaro. Pareceu-me que a paixão de Ischia, a noite de
amor em Forio, a relação secreta na piazza dei Martiri, a gravidez, tudo
desbotasse e se reduzisse a um dispositivo mecânico que, ao sair de
Nápoles, Nino reativara com Silvia e sabe-se lá com quantas outras. A
coisa me ofendeu, quase como se eu tivesse Lila escondida num canto de
minha cabeça e experimentasse seus próprios sentimentos. Senti uma
amargura como se ela mesma sentiria se tivesse sabido, fiquei furiosa
como se tivesse sofrido a mesma injustiça que ela. Nino tinha traído
Lila e a mim. Estávamos, ela e eu, dentro da mesma humilhação, o
amávamos sem nunca termos de fato sido amadas. Portanto ele era, apesar
de suas qualidades, um homem frívolo, superficial, um organismo animal
que exalava suores e fluidos e deixava para trás, como resíduo de um
prazer distraído, matéria viva concebida, nutrida e formada em ventres
femininos. Lembrei-me de quando viera me encontrar no bairro, anos
antes, e tínhamos ficado conversando no pátio e Melina o avistara da
janela e o confundira com o pai. A ex-amante de Donato tinha captado
semelhanças que a mim pareceram inexistentes. Mas agora era claro, ela
estava certa e eu, errada. Nino não fugia do pai por medo de se tornar
como ele, Nino já era o pai e não queria admitir isso.” (P. 78)
(5)
“Mas logo em seguida retornou ao salão, decidida a dizer o que pensava
para não se sentir diminuída. Agora um jovem de cabelo encaracolado
estava falando com grande competência sobre a siderúrgica Italsider e o
trabalho por empreitada. Lila esperou que o rapaz terminasse e,
ignorando o olhar perplexo de Enzo, pediu a palavra. Falou longamente,
em italiano, enquanto Gennaro se agitava em seu colo. Começou baixinho,
depois prosseguiu em meio ao silêncio geral com uma voz talvez muito
alta. Disse provocadora que não sabia nada da classe operária. Disse que
só conhecia as operárias e os operários da fábrica em que trabalhava,
pessoas com as quais não havia absolutamente nada a aprender senão a
miséria. Vocês imaginam — perguntou — o que significa passar oito horas
por dia mergulhado até a cintura na água de cozimento das mortadelas?
Imaginam o que significa ter os dedos cheios de feridas de tanto
descarnar ossos de animais? Imaginam o que significa entrar e sair das
câmaras frigoríficas a vinte graus negativos e receber dez liras a mais
por hora — dez liras — a título de insalubridade? Se imaginam, o que
acham que podem aprender com gente que é forçada a viver assim? As
operárias devem permitir que chefetes e colegas passem-lhe a mão na
bunda sem dar um pio. Se o patrãozinho sentir necessidade, uma delas
deve acompanhá-lo até a câmara de maturação — coisa que já o pai dele
fazia, e talvez até o avô — e ali, antes de pular em cima de você, esse
mesmo patrãozinho lhe faz um discursinho batido sobre como o cheiro dos
salames o excita. Homens e mulheres se submetem a revistas corporais,
porque na saída há uma coisa chamada “triagem” que, quando se acende o
vermelho em vez do verde, quer dizer que você está levando escondido
salames ou mortadelas. A “triagem” é controlada pelo vigia, um espião do
patrão, que acende o vermelho não só para os possíveis furtadores, mas
especialmente para moças bonitas e arredias e para os encrenqueiros.
Esta é a situação na fábrica onde eu trabalho. O sindicato nunca entrou
ali, e os operários não passam de uma gente pobre e chantageada, sujeita
à lei do patrão, ou seja, eu lhe pago e portanto a possuo e possuo sua
vida, sua família e tudo o que está à sua volta, e, se você não fizer do
jeito que eu mando, acabo com sua raça.”
(P. 113)
(6)
“Melhorar, melhorar-se? Você, por exemplo, melhorou por acaso, tornou-se
alguém como Nadia ou Isabella? Seu irmão melhorou, tornou-se alguém
como Armando? E seu filho, é como Marco? Não, nós continuamos nós, e
ele, eles. Então por que você não se resigna? Culpa da cabeça que não
sabe acalmar-se, procura continuamente uma maneira de funcionar.
Desenhar sapatos. Batalhar para construir uma fábrica de calçados.
Reescrever os artigos de Nino, não dar trégua a ele até que fizesse como
você queria. Usar a seu modo as apostilas de Zurique, com Enzo. E agora
demonstrar a Nadia que, se ela faz a revolução, você faz mais ainda. A
cabeça, ah, sim, o mal está lá, é pela insatisfação da cabeça que o
corpo está adoecendo. Estou cansada de mim, de tudo. Estou cansada até
de Gennaro: o destino dele, se tiver sorte, é acabar num lugar como
este, rastejando por cinco liras a mais diante de algum patrão. E aí?
Aí, Cerullo, assuma suas responsabilidades e faça o que sempre teve em
mente: assustar Soccavo, tirar dele o vício de comer as operárias dentro
da maturação. Mostre o que você soube preparar ao estudante com cara de
lobo. Naquele verão em Ischia. As bebidas, a casa de Forio, a cama
luxuosa em que esteve com Nino. O dinheiro vinha deste lugar, deste mau
cheiro, destes dias passados no asco, desta labuta paga com poucas
liras. O que eu cortei aqui? Está saindo pra fora uma gosma amarelada,
que nojo. O mundo gira, mas pelo menos, se cair, se quebra.” (P. 155)
(7)
“O que ela via em Enzo? No fim das contas, acho, a mesma coisa que
tinha querido ver em Stefano e em Nino: uma maneira de finalmente pôr
tudo de pé do modo mais justo. Mas enquanto Stefano, desmoronada a
fachada do dinheiro, se revelara uma pessoa sem substância e perigosa;
enquanto Nino, desmoronada a fachada da inteligência, se transmudara
numa fumaça negra de dor; Enzo por ora lhe parecia incapaz de tristes
surpresas. Tinha sido o menino da fundamental que ela, por motivos
obscuros, sempre respeitara, e agora era um homem tão intimamente
compacto em cada gesto, tão resoluto diante do mundo e tão manso com ela
que lhe fazia excluir a hipótese de poder de repente se deformar.” (P. 97)
(8) ““Você realmente trabalha nessas condições?”
Ela, incomodada com o contato, retraiu o braço e se insurgiu:
“E você? Como é que você trabalha? Como vocês dois trabalham?”
Não
responderam. Trabalhavam duramente, isso era certo. E pelo menos Enzo
tinha com certeza sob os olhos, na fábrica, algumas operárias esgotadas
pelo cansaço, pelas humilhações e obrigações domésticas, tanto quanto
Lila. No entanto, agora, ambos se horrorizavam com as condições em que
ela trabalhava, não o podiam tolerar. É preciso esconder tudo deles, dos
homens. Preferiam não saber, preferiam fazer de conta que o que
acontecia em seus ambientes por algum milagre não ocorreria com as
mulheres ligadas a eles e que — esta era a ideia que os acompanhara
desde a infância — deviam proteger mesmo correndo o risco de serem
assassinados. Diante daquele silêncio, Lila ficou ainda mais furiosa.
“Vão tomar no cu”, disse, “vocês e a classe operária.”” (P. 114)
(9)
“Murmurou que as mulheres para ele eram brinquedos com uns buracos para
brincar. Todas. Todas, menos uma. Lina era a única mulher no mundo que
ele amava — amava, sim, como nos filmes — e respeitava. Ele me disse —
soluçou Gigliola — que ela, sim, saberia decorar esta casa. Me disse que
dar dinheiro a ela para gastar à vontade, sim, teria sido um prazer. Me
disse que, com ela, poderia realmente se tornar alguém importante em
Nápoles. Me disse: se lembra do que ela foi capaz de fazer com aquela
foto vestida de noiva, se lembra de como arrumou a loja? E você,
Pinuccia e todas as outras, que merda são, que merda sabem fazer? Ele
lhe dissera aquelas coisas, e não só. Disse que pensava em Lila noite e
dia, mas não com a vontade normal, o desejo por ela não se assemelhava
ao que ele conhecia. Na realidade não a queria. Isto é, não a queria
como em geral queria as mulheres, para senti-las debaixo de si, para
virá-las, revirá-las, abri-las, arrebentá-las, colocá-las sob seus pés e
esmagá-las. Não a queria para pegá-la e esquecê-la: ele a queria na
delicadeza da cabeça repleta de ideias; a queria na inventividade; e a
queria sem a estragar, para que ela durasse; a queria não para fodê-la,
aquela palavra aplicada a Lila o perturbava. Ele a queria para beijá-la e
acariciá-la; a queria para ser acariciado, ajudado, guiado, comandado; a
queria para ver como mudava com o passar do tempo, como envelhecia; a
queria para pensar com ela e ser ajudado a pensar. Entende? Falou dela
como de mim — de mim, que estamos prestes a nos casar — nunca falou.
Juro a você, é assim mesmo. Ele murmurava: meu irmão Marcello, o babaca
do Stefano e Enzo, com aquela cara de bunda, o que eles compreenderam de
Lina? Será que se deram conta do que perderam, do que podem perder?
Não, eles não têm inteligência para isso. Somente eu sei o que ela é,
quem é. Eu a reconheci. E sofro ao pensar em como está se perdendo.”
(P. 200)
(10)
“O que estou buscando? Mudar meu nascimento? Mudar a mim mesma e também
aos outros? Repovoar esta cidade agora deserta de cidadãos sem o
suplício da miséria ou da avidez, sem rancor e sem fúrias, cidadãos
capazes de gozar o esplendor da paisagem como as divindades que um dia a
habitaram? Favorecer meu demônio, dar a ele uma boa vida e me sentir
feliz? Eu tinha usado o poder dos Airota, gente que há gerações lutava
pelo socialismo, gente que estava ao lado de pessoas como Pasquale e
Lila, não porque eu pensasse em consertar os problemas do mundo, mas
porque estava em condições de ajudar uma pessoa que eu amava e me
parecera indesculpável não o fazer. Tinha agido mal? Devia ter deixado
Lila se virar? Nunca mais, nunca mais moveria uma palha por ninguém.
Parti, fui me casar.”
(P. 221)
(11) “Considerava-me parte de
uma força irrefreável, considerava-me invulnerável. Ninguém podia fazer
nenhum mal a mim nem a meu menino. Nós dois éramos a única realidade
durável, eu visível, e ele (ou ela: mas Pietro desejava um menino), por
ora, invisível. O resto era uma corrente de ar, uma onda imaterial de
imagens e sons que, desastrosa ou benéfica que fosse, constituía
material para o meu trabalho, ia além ou pesava para que eu a pusesse em
palavras mágicas dentro de um romance, um artigo, um discurso público,
atentando para que nada escapasse ao esquema e cada conceito agradasse
aos Airota, à editora, a Nino — que em algum lugar com certeza me lia —,
até a Pasquale (por que não?) e a Nadia, e a Lila, que finalmente
seriam forçados a pensar: olha aí, fomos injustos com Lena, ela está do
nosso lado, veja só o que ela escreve.” (P. 229)
(12) “Lila —
disse a mim mesma — reprime calculadamente as emoções e os sentimentos.
Quanto mais eu buscava instrumentos para tentar compreender a mim mesma,
mais ela, ao contrário, se escondia. Quanto mais eu procurava trazê-la
para a berlinda e envolvê-la em minha vontade de clareza, mais ela se
refugiava na penumbra. Parecia a lua cheia quando se oculta atrás do
bosque e os ramos rabiscam sua superfície.” (P. 305)
(13)
“Convenci-me de que o longo fio de voz que tinha sido nosso único
contato por anos não nos favorecera. Tínhamos mantido o laço entre
nossas duas histórias, mas por subtração. Tínhamos nos tornado entidades
abstratas uma para a outra, tanto que agora eu podia inventá-la para
mim a meu modo, seja como uma especialista em computadores, seja como
uma guerrilheira urbana decidida e implacável, ao passo que ela, com
toda probabilidade, podia me ver tanto como o estereótipo da intelectual
de sucesso quanto como uma senhora culta e abastada, toda dedicada aos
filhos, aos livros e a conversas eruditas com o marido acadêmico. Ambas
precisávamos de uma nova concretude, de um corpo, e no entanto nos
distanciáramos e não conseguíamos mais nos conceder isso.” (P. 310)
(14)
“Terminei concluindo que antes de tudo eu devia entender melhor o que
eu era. Indagar sobre minha condição de mulher. Tinha me excedido,
fizera um enorme esforço para adquirir capacidades masculinas.
Acreditava que devia saber tudo, tratar de tudo. O que me importava a
política, as lutas? Queria fazer bonito diante dos homens, estar à
altura. À altura de quê? Da razão deles, a mais irracional. Tanto
esforço para memorizar frases em voga, tanta energia desperdiçada. Tinha
sido condicionada pelo estudo, que havia modelado minha cabeça, minha
voz. Que pactos secretos assumira intimamente a fim de me destacar? E
agora, depois do duro esforço de aprender, o que precisava desaprender?
Além disso, por causa da forte proximidade de Lila, tinha sido forçada a
me imaginar de um jeito que eu não era. Acabara me somando a ela e me
sentia mutilada assim que me subtraía. Sem Lila, nem sequer uma ideia.
Sem o apoio de seus pensamentos, nenhum pensamento em que pudesse
confiar. Nenhuma imagem. Devia me aceitar fora dela. O núcleo era esse.
Aceitar que eu era uma pessoa mediana. O que eu devia fazer? Tentar
escrever mais uma vez? Talvez não tivesse a paixão para isso, talvez me
limitasse a executar uma tarefa. Então nunca mais escrever. Achar um
trabalho qualquer. Ou bancar a madame, como dizia minha mãe. Fechar-me
na família. Ou jogar tudo pelos ares. A casa. As filhas. O marido.” (P. 277)
(15)
“Fiz uma pausa, depois continuei: talvez haja algo errado nessa vontade
dos homens de nos instruir; na época eu era uma menina e não percebia
que, naquele seu desejo de me transformar, estava a prova de que não
gostava de mim tal como eu era, queria que eu fosse outra, ou melhor,
não desejava simplesmente uma mulher, mas uma mulher como ele imaginava
que poderia ser se tivesse nascido mulher. Para Franco, disse, eu era
uma possibilidade de ele expandir-se no feminino, de apossar-se disso:
eu constituía a prova de sua onipotência, a demonstração de que sabia
ser não só homem do modo certo, mas também mulher. E hoje, que não me
sente mais como uma parte de si, se sente traído.” (P. 347)