História da menina perdida - Elena Ferrante
História da menina perdida encerra a tetralogia napolitana de Elena
Ferrante, narrando a vida adulta e a maturidade de Lenu e Lila. Elas
voltam a se aproximar, não só emocionalmente, mas também espacialmente,
como em sua infância narrada no primeiro livro, A amiga genial. Como o
título sugere, é uma história sobre perder-se, o que ambas vivenciam de
alguma forma. Acredito que também tenha muito das ilusões perdidas
conforme conhecemos as pessoas e o mundo mais profundamente, momento a
partir do qual mantê-las se torna uma escolha possível para nos
confortar.
É difícil escrever sobre o final de uma história que se tornou tão próxima que é como se nunca fosse ter fim. Mas tento.
Foto: autoria própria.
Após
deixar a vida de casada para viajar com Nino, Lenu passa por um período
de muita felicidade e instabilidade ao lado dele, conhecendo novos
lugares, divulgando o novo livro, voltando a morar em Nápoles. Pela
primeira vez, sua vida sai dos rumos cuidadosamente traçados por uma
ideia de sucesso e adequação que ela seguira desde a infância, que a
faziam ser vista no bairro como “a boazinha”, em contraste com a
ferocidade caótica de Lila. Ao mesmo tempo, há certa ambiguidade em sua
atitude de fugir com Nino: sendo uma atitude de independência em relação
à reprovação que Lila manifesta, é também algo parecido com o que a
própria Lila vivera, com o mesmo homem, anos antes, deixando para trás o
marido e o filho pelo curto intervalo em que persistira sua convivência
com Nino.
No entanto, acredito que Lenu de fato esteja fazendo
algo que realmente quer pela primeira vez, algo desprendido da ambição
que sempre a acompanhara de mudar de classe social, de estar à altura
das opiniões alheias, ou até mesmo da opinião de Lila. Uma ação motivada
principalmente pelo amor que sentia por Nino desde criança.
Lenu
acredita que esteja sendo correspondida, ainda que comece a ver novos
sinais de quem ele é, parecendo flertar continuamente com qualquer
mulher que encontrem. Embora ela dê prosseguimento ao divórcio de
Pietro, logo descobre que Nino não deixou a família de origem,
intercalando a estadia entre Lenu e a casa deles.
Ela se
enfurece e passa alguns meses longe, com suas filhas, na casa da
ex-cunhada, Mariarosa. Lá também estava Franco, com quem volta a
conversar, uma pessoa muito diferente após as agressões que sofrera por
um grupo de fascistas, que o deixaram cego de um olho. Após algum tempo,
ele acaba suicidando-se.
Apesar dos conflitos, Lenu continua
incapaz de resistir a Nino e volta com ele, mesmo sabendo que continua
no papel de amante. É quando volta a morar em Nápoles com as filhas. De
início, ela tenta voltar a ter contato com sua mãe, indignada com o rumo
que tomou a vida da filha que era considerada a mais bem sucedida. Para
ela, agora Lila é quem se deu bem, agora dona, com Enzo, da própria
empresa na área de tecnologia, cuja sede fica no bairro de sempre. Ao
obter poder aquisitivo, a percepção dos vizinhos, de uma Lila cruel e
rebelde, se transforma na imagem de uma santa, pois ela passa a se
tornar uma alternativa ao poderio dos Solara e alguém que ajuda a todos
financeiramente e com oportunidades de emprego.
No início, Lenu
continua hesitando em se reaproximar de Lila, que, pelo contrário,
insiste para que ela volte a morar no bairro. É também Lila que lhe
avisara que Nino continuava com a esposa. Com o tempo, a reaproximação
se torna inevitável. Quase que simultaneamente, elas engravidam: Lenu de
sua terceira filha, dessa vez de Nino, como sempre desejara, e Lila de
Enzo, e mais uma vez elas são um espelho uma da outra, como eram na
infância com suas respectivas bonecas.
No mesmo período, Lenu
descobre que a mãe está com câncer e começa a contar com Lila para
cuidar de suas filhas enquanto cuida da mãe, que se mostra afetuosa como
nunca, conquistando também um amor que Lenu nunca sentira por ela. Dede
e Elsa logo se afeiçoam à “tia” Lila e a seu filho já adolescente. É
quando Lenu presencia pela primeira vez o quanto Lila é cuidadosa com as
crianças, habilidosa como em tudo que já fizera.
Durante a
gravidez das duas, em um dia em que estão conversando no apartamento de
Lila, a cidade é atingida por um terremoto. Elas se trancam num carro e
Lila entra em pânico. É quando, pela primeira e última vez, explica a
Lenu sua desmarginação, algo que atravessa toda a sua vida (1). Ela fala
sobre como sempre viveu tentando fugir daquele movimento que fazia o
mundo perder os contornos, a apavorava, e sentira pela primeira vez aos
quinze anos, na noite de Ano-Novo em que as famílias Carracci e Solara
disputavam os melhores fogos de artifício.
Ali Lenu, e por
consequência, nós, leitores, temos acesso à Lila vulnerável que sempre
escondeu, compreendemos os movimentos caóticos dentro de si, tão
diferente de Lenu, que mesmo nesse momento de medo se sente segura. O
ponto de encontro entre as duas, que as uniu desde sempre, parece se
revelar como essa necessidade de Lila por algo sólida, paralela à
necessidade de Lenu de expandir-se.
“Tudo o que me tocava — os estudos, os livros, Franco, Pietro, as meninas, Nino, o terremoto —, tudo passaria, e eu — qualquer eu entre aqueles que fui somando —, eu continuaria firme, eu era a ponta do compasso que está sempre fixa, enquanto o grafite corre à volta traçando círculos. Já Lila — agora me parecia claro, e isso me deu orgulho, me acalmou, me enterneceu —, Lila penava para se sentir estável. Não conseguia, não acreditava. Por mais que sempre tivesse dominado todos nós, por mais que tivesse imposto e impusesse um modo de ser, sob o risco de arcarmos com seu ressentimento e sua fúria, ela percebia a si mesma como um magma, e todos os seus esforços, no fim das contas, eram voltados apenas para se conter. Quando, apesar de sua engenharia preventiva sobre pessoas e coisas, o magma prevalecia e transbordava, Lila se perdia de Lila, o caos parecia a única verdade, e ela — tão ativa, tão corajosa — se anulava aterrorizada, tornava-se um nada.” (P. 171 - 172)Desde o primeiro livro temos pistas dessa abstração que compõe a forma de Lila estar no mundo. Na infância, sua angústia com o passado que existira antes delas (2). Na adolescência, quando percebeu a desmarginação na noite de Ano-Novo (3), na percepção aguda e pessimista das tragédias humanas (4), na sua terrível “lua-de-mel” com Stefano (5), frente a toda a violência de seu casamento, em seu encanto pelos personagens de Beckett (6), no período conturbado do trabalho na fábrica de embutidos (7).
É nesse ponto que mais me identifico com Lila, e acredito que há muito a falar sobre a desmarginação, mais do que caberia aqui. No final, deixo uma recomendação para complementar a leitura.
Depois do terremoto, tudo volta ao normal (pelo menos do ponto de vista de Lenu), ninguém de sua convivência é ferido. Ela dá à luz a Imma, a quem dá o nome da mãe, falecida pouco depois. Mais algumas semanas e Lila também dá à luz a uma menina, Tina, também o nome da mãe, e Lenu se lembra que era o nome da boneca que Lila jogara no buraco no episódio que originara sua amizade (8).
Lenu continua com Nino, mas se vê cada vez menos convencida por seus discursos, tanto políticos quanto, e especialmente, em relação às mulheres. Ou seja, Lenu por fim se dá conta de que Nino é o tipo de homem que parece defender a igualdade e os direitos das mulheres até conquistá-las, a partir de quando elas devem sobretudo servi-lo, o homem que critica os outros sem ceder os próprios privilégios e o próprio machismo, o homem que conquista mulheres que podem lhe ser úteis (9). Diferente das atitudes que mostrava quando Lenu estava com Pietro, Nino se mostra semelhante a ele em muitos aspectos, deixando para ela todo o trabalho doméstico, o cuidado com as filhas e uma ausência cada vez mais prolongada, o que rouba de Lenu muito do tempo em que gostaria de estar escrevendo.
“Nino se entusiasmava sinceramente pelo modo como as mulheres buscavam a si mesmas. Não havia jantar em que não repetisse que pensar junto com elas era, agora, a única saída para um verdadeiro pensar. Mas mantinha seus espaços e suas numerosas atividades bem protegidos, punha em primeiro lugar sempre e apenas a si mesmo, não cedia um instante de seu tempo.” (P. 227)
Não demora muito até
que Lenu o pegue em flagrante, traindo-a. Finalmente, ela o vê por
inteiro, e descobre por meio de Lila e Antonio, seu namorado da
adolescência, que Nino tem muitas amantes, que nunca rompe
definitivamente com nenhuma delas. Ela o deixa imediatamente, e volta a
morar no bairro onde nasceu, no apartamento acima de Lila e Enzo.
Parte dessa decisão de mudar para lá ocorre porque, em sua crescente
proximidade com Lila e seus amigos de infância, Lenu percebe que volta a
ser como uma entidade comparada a amiga aos olhos do bairro,
sentindo-se necessária e querida. Além disso, resolve enviar para a
editora o livro ambientado em Nápoles que escrevera anos antes e que
fora reprovado pela ex-sogra e por Lila. O editor, diferente delas,
acha-o excelente, e Lenu crê que estar no bairro a ajudará a lapidar a
história, o que de fato acontece, pois o livro recebe bastante
visibilidade. A junção desses fatores contribui para que Lenu faça as
pazes com sua origem, reconhecendo aquele lugar como parte de si, algo
contra o que ela havia se acostumado a lutar (10).
A relação com
Lila também mostra sinais de sua maturidade. Em vez de se comparar a
ela, Lenu admite que Lila a inspira. Também continua lhe confiando suas
filhas sempre que precisa viajar, e torna-se cada vez mais satisfeita
com seu trabalho, com o sucesso de seus livros e artigos cada vez mais
numerosos. Suas antigas inseguranças parecem se amenizar, e ela vive bem
consigo mesma (11).
Entretanto, as violências e intrigas do
bairro continuam. Agora, as drogas circulam como um dos muitos negócios
dos Solara, e o filho de Lila, que não trabalha, começa a usar heroína
como o tio, causando conflitos com a família.
Os Solara ameaçam
Lenu por ter narrado a vida no bairro. Embora ela houvesse escrito uma
obra de ficção, sua inspiração viera inevitavelmente de pessoas que
conhecia, e os leitores mais politizados até reconheceram ali a família
Solara. Lila a incentiva a se impor contra eles, pois a visibilidade de
Lenu lhe coloca em uma posição de poder. É então que, fascinada pela
primeira vez em contato com um computador, ela e Lila trabalham juntas
num longo artigo que deveria expor o currículo de atrocidades dos Solara
para que fossem presos (12).
Apesar do grande impacto do
artigo, ele se mostra insuficiente para seu objetivo final. Lila
sente-se desencantada com o poder que atribuía desde criança às palavras
escritas, ao ofício dos escritores, de modo que também se sente
decepcionada com Lenu. Dessa vez, é Lila que parece ter que aceitar quem
a amiga realmente é, mas faz isso a seu modo, sendo muitas vezes
ríspida, até mesmo com Dede e Elsa.
As pequenas Imma e Tina
crescem como amigas. Tina, assim como a mãe, se mostra criativa,
comunicativa, brilhante. Já Imma preocupa Lenu por sua subalternidade, e
embora se desenvolva normalmente, não tem o mesmo ritmo de aprendizado
da outra. Lenu provavelmente se preocupa com isso pelo que ela mesma
sempre sentiu perto de Lila, e descobre que a filha sente falta de um
pai, já que suas irmãs Dede e Elsa continuam tendo contato com Pietro.
Por
isso, ela pede a Nino que visite a filha de vez em quando, dado que
nunca mais se preocupara com elas. Ele aparece num feriado e sai com as
meninas, dando especial atenção a Imma, como Lenu exigira. Nessa
ocasião, ela pedira que Lila também não levasse Tina, para que não
houvesse disputa de atenção. Na hora do almoço, Lenu vê que Lila, como
sempre insurgente, está com Imma no colo, ao lado de Enzo, e conversa
com Nino. Lenu se irrita e vai chamá-los, se dando conta da ausência de
Tina. Ela não está por perto, e todos começam a procurá-la
desesperadamente, por muito tempo.
Tina nunca mais é encontrada.
De todas as tragédias que marcam a vida de Lila e Lenu, esse
desaparecimento é um dos mais tristes para mim, o mais arrasador. Muitas
teorias surgem, uma das quais envolve, como sempre, os Solara, que
teriam tomado Tina para ferir Lila. Nada se concretiza. Lila é
entorpecida pela dor, e nas aparências segue a vida como se nada tivesse
acontecido, esperando que a filha volte a qualquer momento, mas se
distancia cada vez mais das pessoas a seu redor, briga com Enzo, com o
filho, com Lenu e suas filhas. E a velha aversão do bairro em relação a
ela retorna (13).
Apesar das dificuldades, Lenu já não se
ressente do tratamento que Lila lhe despensa. Pelo contrário, agora ela a
compreende, por sua dor e pela desmarginação. Embora a ajude como pode,
também não tenta, como fizera antigamente, ser para ela como uma
salvadora, como quando Lila ficara doente por trabalhar na fábrica de
embutidos (14).
Nino, conforme suas condutas ambiciosas e
discursos conciliatórios, é eleito deputado. Com dificuldade, Lenu
recorre a ele para saber sobre o amigo Pasquale, militante comunista que
vinha sendo procurado há anos e que acaba preso. Imma, já com sete
anos, sente orgulho do pai, que ainda demonstra uma personalidade
cativante.
Nesse momento, Lenu se dá conta mais uma vez da
influência que a ascensão social, o status e o dinheiro exerceram sobre
suas vidas, e justifica muitas atitudes reprováveis que observou nas
pessoas a sua volta. Talvez seja uma forma de nos dizer que ela mesma
foi um deles em alguma medida, em sua ânsia de escapar da pobreza
material e intelectual de seu nascimento, em seu casamento com Pietro,
cujo sobrenome lhe deu acesso mais rápido a uma editora, a uma carreira e
a uma condição financeira confortável.
“Vi em seus olhos o ardor que, naquele momento, ela via queimar em torno de seu pai. Uma luz — pensei — que Nino nunca jamais teria se tivesse naufragado com Lila; a mesma luz que, no entanto, Nadia perdera para sempre afundando com Pasquale; e que abandonaria Dede caso ela se perdesse seguindo Rino. De repente senti com vergonha que eu entendia, e justificava, a irritação de Galiani quando vira a filha sentada no colo de Pasquale, entendia e justificava Nino quando de um modo ou de outro se retirara da vida de Lila e, por que não, entendia e justificava Adele quando precisou fazer das tripas coração ao aceitar que eu me casasse com seu filho.” (P. 404)
Percebemos, assim, que - embora houvesse criticado Lila no passado, por suas filiações temporárias aos negócios dos Carracci, dos Solara, que no fim lhe serviram para atingir os próprios objetivos, contrários a eles, como uma estratégia ora de sobrevivência e autopreservação, ora de conquista -, Lenu se dá conta que fez o mesmo, adaptando-se como possível para alcançar uma vida satisfatória, de modo que seus padrões morais também são volúveis. Essa discussão se estende a suas opiniões políticas, em sua defesa incondicional de Pasquale (compartilhada por Carmen e Lila), que provavelmente tinha de fato cometido crimes, mas em nome do ideal com que crescera.
Em uma conversa com Pietro, ele ironiza as posições políticas mornas de Lenu (15). Apenas com ele se mostrara sempre radical, sempre contrária, talvez para lhe mostrar sua independência. A crítica de Pietro é outro indicativo de que Lenu nem sempre teve a coerência pura que lhe atribuíam quando jovem. Lenu também se equivocou, evitou se comprometer ou comprometer condições que favorecessem, mentiu, traiu, assim como Lila fez tantas vezes. O que lhe diferencia de Lila é o ambiente, as situações em que se desenrolaram suas decisões, e a forma como se deram. Pois se Lenu assumia tons conciliatórios, Lila sempre foi direta e ríspida em seus movimentos.
O próximo conflito de Lenu é com suas filhas maiores. Dede, que está terminando a escola, admite estar apaixonada por Gennaro, o filho de Lila, e que planeja ir embora com ele, mesmo que não tenha trabalho. Porém, sua irmã Elsa, que fingia detestá-lo, é quem atrai Rino, e eles fogem antes, sem dizer para onde. Lenu se desespera e viaja com Enzo para encontrá-los. Nessa viagem, ela e Enzo, companheiro de Lila há muitos anos, sempre silencioso, desabafam sobre suas vidas. Ele é um dos únicos bons homens que fazem parte da história de Lila e Lenu (16).
Elsa e Rino são encontrados na casa dos ex-sogros de Lenu. Dede vai estudar nos Estados Unidos, para onde Pietro se mudara, e Lenu permite que Elsa e Rino morem em sua casa, com receio de perder a filha e convicta de que seu romance adolescente logo terminará. E é o que de fato acontece, meses depois. Ao termina a escola, Elsa também vai morar com o pai e a irmã nos Estados Unidos.
Quando Imma está entrando na adolescência, Lila retoma a proximidade com ela e começa a levá-la em suas andanças por Nápoles, que há alguns anos vinha atraindo seu interesse. Ela passa a conhecer sua cidade tanto espacial, quanto historicamente, e reconta suas descobertas para Imma. Lenu desconfia que Lila está escrevendo um livro secreto sobre Nápoles, mas não consegue extrair nada da amiga. Na verdade, há anos que Lila não emite nenhuma opinião sobre algo além de suas vidas cotidianas, limitando-se a ouvir Lenu.
Elena finalmente decide se mudar, o que vinha postergando há anos. Lila também não entende porque ela continua morando ali, e seu distanciamento é outro motivo que faz com que Lenu resolva seguir com sua vida em outros lugares, como é de sua natureza. Ela vai para Turim, onde começa a trabalhar como editora, além de continuar escrevendo, e Imma vai para a universidade na França.
Ao se despedir de Lenu na mudança, Lila irrompe em um fluxo de palavras, volta a falar de Tina, da teoria de que as pessoas que a levaram tinham a intenção de levar Imma, mas a confundiram devido a uma foto de Lenu e Tina que saíra num jornal. Apesar de seu desamparo, Lila agradece a Lenu por sua amizade de uma vida (17).
“Toda relação intensa entre seres humanos é cheia de armadilhas e, caso se queira que dure, é preciso aprender a desviar-se delas. Foi o que fiz também naquela circunstância e, ao final, tive a impressão de apenas confirmar pela enésima vez quanto nossa amizade era esplêndida e tenebrosa, como tinha sido longo e complicado o sofrimento de Lila, como ele ainda durava e duraria para sempre.” (P. 451)
Lenu começa a entrar na
maturidade. Suas filhas se casam, têm filhos. Após anos de trabalho na
editora, Lenu vê as vendas de seus livros em decadência e demandas cada
vez mais escassas de seus artigos. Paralelamente, ela continua
imaginando a possibilidade de Lila estar escrevendo algo melhor do que
tudo que ela mesma escrevera em sua carreira (18).
No entanto, Lila já não trabalha e sequer responde aos e-mails de Lenu.
Voltara a morar no apartamento da infância após a morte dos pais, ela e
Enzo haviam vendido a empresa e se separado. Assim, elas só se falam
brevemente quando Lenu a visita no bairro de vez em quando, muitas vezes
para o funeral de algum de seus antigos amigos e vizinhos.
Nesse
ponto, acho importante mencionar o fim de alguns dos personagens.
Alfonso fora assassinado há alguns anos. Ao longo dos anos, ele e Lila
haviam desenvolvido uma relação muito próxima, pois ela fora a primeira
pessoa para quem contou ser gay e apaixonado por Michele Solara. Como
Michele era obcecado por Lila, Alfonso se espelhara nela cada vez mais,
inclusive na aparência física, e eles chegaram a se relacionar por um
tempo. Com a ajuda de Lila, Alfonso, para além de imitá-la, foi
descobrindo também o seu eu verdadeiro. No entanto, o seu tempo e o
contexto do bairro e de Nápoles, que suprimiram e abusaram de tantas
outras personagens, como as próprias Lila e Lenu, também o esmagaram, e
ele começou a aparecer muitas vezes machucado, até ser assassinado, uma
grande perda principalmente para Lila.
Outro assassinato
importante é o dos Solara. Como fica o bairro após sua morte? Serão
substituídos por outras famílias poderosas e violentas? Como Lenu se
muda, não sabemos, embora a resposta mais provável seja sim. Corre o
boato de que Pasquale, e até Lila, estariam envolvidos.
Aproveito
para pontuar que, embora ao longo das resenhas eu tenha dado um enfoque
maior ao centro da tetralogia, a amizade entre Lila e Lenu, todos os
personagens são intrincados e complexos, e renderiam muitas outras
análises e debates.
Nas ocasiões de reencontro, Lila faz Lenu
prometer que não escreverá sobre elas. Afinal, Lila deseja cada vez mais
apagar-se. Lenu promete. Até que, num dia em que fica presa num hotel
devido à chuva, ela escreve em um fôlego só uma novela chamada Uma
amizade, baseada na amizade delas e no que acontecera com Tina. O livro
reacende o sucesso de Lenu, porém, ela logo se arrepende de tê-lo
escrito, pois Lila nunca mais atende a seus telefonemas, nunca mais a
encontra.
Ao terminar a narrativa que lemos, Lenu conta sua
experiência de escrever toda a história de si e de sua amizade com Lila.
O tempo todo ela esperara que Lila invadisse seu computador, recontasse
a história a seu modo. Mas isso se revela muito mais um desejo de Lenu,
de estar novamente unida à amiga, do que uma possibilidade real. Lila
continua desaparecida, conforme os primeiros parágrafos de A amiga
genial.
Lenu sempre foi uma personagem complexa, tanto quanto
Lila, menos misteriosa por ser a própria narradora da história, mas
parece passar metade da vida até descobrir a própria profundidade. Lenu
lutou para ser essa narradora da própria história, enquanto Lila se
deixa interpretar, negando-se a deixar um legado, um vestígio seu pelo
mundo, e Lenu apropria-se dessa tarefa, desejando, pelo contrário, que
tanto ela quanto Lila persistam, com sua amizade (19) (20).
"Ah, Lila, a sapateira, Lila, que imitava a mulher de Kennedy, Lila, a artista e decoradora, Lila, a operária, Lila, a programadora, Lila, sempre no mesmo lugar e sempre fora de lugar." (P. 473)
O final da tetralogia napolitana é cruamente belo e triste. Mesmo lendo pela segunda vez, mesmo escrevendo sobre ele agora, meus olhos voltam a se encher de lágrimas, como algumas vezes fizeram durante a leitura desses quatro volumes. Essas personagens, que ora se fundem uma à outra, ora se repelem, numa relação mais complexa do que se pode definir com qualquer estereótipo sobre amizade ou amizade entre mulheres, em sua construção de si mesmas por causa e apesar do contexto em que nascem, em seus afetos e desafetos, contradições e linearidades, agora também fazem parte de mim.
No epílogo, Lenu encontra em sua caixa de correio as bonecas com que ela
e Lila brincaram na infância, Tina e Nu. Só uma pessoa poderia tê-las
deixado ali, e ela espera que Lila apareça de algum lugar, mas não. Há
apenas as bonecas, que ela acreditara estarem perdidas para sempre,
dando origem a uma amizade que moldara toda a sua vida.
Como
tantos outros movimentos de Lila, esse também contém ambivalência e
mistério. Estaria ela com as bonecas desde aquele episódio da infância,
quando ela teria fingido não encontrá-las para atrair Lenu para si? Ou
teria ela as encontrado novamente em uma busca ou acaso recente? Deixar
as bonecas para Lenu é um ato de despedida? De rejeição à quebra da
promessa de não escrever sobre elas? De amor e gratidão pelo laço que
estabeleceram ao longo da vida, como o tempo que une as duas bonecas?
Seria tudo isso ao mesmo tempo?
Essa é a dúvida e a contemplação que nos deixa Lila, que nos deixa Lenu, que nos deixa Elena Ferrante.
A
autora nos presenteou com um romance de formação, com uma saga, com uma
amizade, com uma história atravessada pelo ser humano, pelas questões
sociais, pelas opressões e pelas lutas de resistência, pelo espaço e
pelo tempo, pelas complexidades que nos compõem. E por isso sempre serei
grata.
“Diferentemente do que ocorre nos romances, a vida verdadeira, depois que passou, tende não para a clareza, mas para a obscuridade. Pensei: agora que Lila se fez ver tão nitidamente, devo resignar-me a não vê-la nunca mais.”
Recomendo como complemento da leitura a dissertação de mestrado de Fabiane Secches, Uma longa experiência de ausência: a ambivalência em A amiga genial, de Elena Ferrante. Fabiane também é autora de Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência.
***
(1) "Eu tinha medo, ah, sim, estava apavorada. Mas, para minha grande
surpresa, não estava tão assustada quanto Lila. Naqueles segundos de
terremoto ela de repente se despira da mulher que havia sido até um
minuto antes — a que sabia calibrar com precisão pensamentos, palavras,
gestos, táticas e estratégias —, quase como se naquela circunstância a
considerasse uma armadura inútil. Agora era outra. Era a pessoa que eu
tinha visto na noite do réveillon de 1958, quando estourara a guerra de
fogos de artifício entre os Carracci e os Solara; ou a que mandara me
chamar a San Giovanni a Teduccio, quando trabalhava na fábrica de Bruno
Soccavo, achava que estava doente do coração e queria me dar Gennaro
para criar, porque estava certa de que ia morrer. Só que, se no passado
os pontos de contato entre as duas Lilas subsistiam, agora aquela outra
mulher parecia ter emergido diretamente das entranhas da terra, não se
parecia minimamente com a amiga que poucos minutos antes eu invejara
pela maneira como sabia selecionar as palavras com grande arte, nem
sequer nos traços, que estavam desfigurados pela angústia. Eu jamais
poderia passar por uma metamorfose tão brusca, minha autodisciplina era
estável, o mundo continuava à minha volta com naturalidade, mesmo nos
momentos mais terríveis.
(...)
Exclamou: oh, meu Deus, expressão
que eu nunca a ouvira dizer. O que foi, perguntei. Gritou arquejando que
o carro estava se desmarginando, que também Marcello ao volante estava
se desmarginando, a coisa e a pessoa esguichavam de si misturando metal
líquido e carne. Usou precisamente desmarginar. Foi naquela ocasião que
ela recorreu pela primeira vez àquele verbo, se agitou para explicar seu
sentido, queria que eu entendesse bem o que era a desmarginação e
quanto aquilo a aterrorizava. Apertou ainda mais forte minha mão,
resfolegando. Disse que o contorno de coisas e pessoas era delicado, que
se desmanchava como fio de algodão. Murmurou que, para ela, era assim
desde sempre, uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra,
era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma
mistura. Exclamou que sempre se esforçara para se convencer de que a
vida tinha margens robustas, porque sabia desde pequena que não era
assim — não era assim de jeito nenhum —, e por isso não conseguia
confiar em sua resistência a choques e solavancos. Ao contrário do que
fizera até pouco antes, começou a escandir frases excitadas, abundantes,
ora as misturando com um léxico dialetal, ora recorrendo às infindáveis
leituras que fizera quando menina. Balbuciou que nunca deveria se
distrair, quando se distraía as coisas reais — que a aterrorizavam com
suas contorções violentas e dolorosas — se sobrepunham às falsas, que a
acalmavam com sua compostura física e moral, e ela submergia numa
realidade empastada, viscosa, sem conseguir dar contornos nítidos às
sensações. Uma emoção tátil se diluía em visual, a visual se diluía em
olfativa, ah, Lenu, o que é o mundo real, a gente viu agora mesmo, nada,
nada que se possa dizer definitivamente: é assim. De modo que, se ela
não estivesse atenta, se não cuidasse das margens, tudo se desfazia em
grumos sanguíneos de menstruação, em pólipos sarcomatosos, em fragmentos
de fibra amarelada." (História da menina perdida, p. 171 - 172)
(2) “Antes. Lila usava frequentemente essa fórmula, na escola e fora dela.
Mas parecia não se importar tanto com o que tinha acontecido antes de
nós – eventos em geral obscuros, sobre os quais os adultos se calavam ou
se pronunciavam com muita reticência –, e sim com o fato de ter havido
um antes. Era isso que na época a deixava perplexa e às vezes até
nervosa.” (A amiga genial, p. 28)
(3) “Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio de
desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o
sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se
dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em
cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi
tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a
coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa
tarde de novembro de 1980 – ambas já estávamos com trinta e cinco anos,
casadas, com filhos –, ela me contou
minuciosamente o que lhe
acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia,
recorrendo pela primeira vez a essa palavra.” (A amiga genial, p. 81)
(4) ““Você ainda perde tempo com essas coisas, Lenu? Nós estamos voando sobre uma bola de fogo. A parte que resfriou flutua sobre a lava. Sobre esta parte construímos prédios, pontes e estradas. De vez em quando a lava sai do Vesúvio ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo lado que nos fazem adoecer e morrer. Há as guerras. Há uma miséria ao redor que nos torna todos ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o quê? Um curso de teologia em que se esforça para entender o que é o Espírito Santo? Deixa pra lá, foi o Diabo que inventou o mundo, não o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Quer ver o fio de pérolas que Stefano me deu?”. Falou assim, grosso modo, me confundindo. E não só naquela circunstância, mas sempre com maior frequência, até que aquele tom se estabilizou, tornou-se seu modo de me fazer frente.” (A amiga genial, p. 259)
(5) “Mas agora as linhas de contorno que por muito tempo ele [Stefano] a
si mesmo impusera estavam prestes a ceder, e Lila foi tomada de um
terror infantil, maior do que quando tínhamos descido ao subsolo para
recuperar nossas bonecas. Dom Achille estava ressurgindo da lama do
bairro e se nutrindo da matéria viva de seu filho. O pai estava rachando
sua pele, modificando seu olhar, explodindo de dentro do corpo.”
(História do novo sobrenome, pág. 37)
(6) “Falou longamente de
uma senhora que se chamava Winnie e que a certa altura exclamava: outro
dia divino, e ela mesma declamou aquela frase, emocionando-se a ponto
de, ao pronunciá-la, sua voz tremer um pouco: outro dia divino, palavras
insuportáveis, porque nada, nada, nos explicou, nada na vida de Winnie,
nada nos gestos, nada na cabeça, era divino, nem naquele dia nem nos
dias anteriores. Mas, acrescentou, quem mais a surpreendeu foi um tal de
Dan Rooney. Dan Rooney, disse, é cego, mas não se lamenta, porque
considera que sem a visão a vida é melhor, e chega até a se perguntar
se, tornando-se surdo e mudo, a vida não seria ainda mais vida, vida
pura, vida sem mais nada que não a vida.” (História do novo sobrenome,
p. 211)
(7) “Melhorar, melhorar-se? Você, por exemplo, melhorou
por acaso, tornou-se alguém como Nadia ou Isabella? Seu irmão melhorou,
tornou-se alguém como Armando? E seu filho, é como Marco? Não, nós
continuamos nós, e eles, eles. Então por que você não se resigna? Culpa
da cabeça que não sabe acalmar-se, procura continuamente uma maneira de
funcionar. Desenhar sapatos. Batalhar para construir uma fábrica de
calçados. Reescrever os artigos de Nino, não dar trégua a ele até que
fizesse como você queria. Usar a seu modo as apostilas de Zurique, com
Enzo. E agora demonstrar a Nadia que, se ela faz a revolução, você faz
mais ainda. A cabeça, ah, sim, o mal está lá, é pela insatisfação da
cabeça que o corpo está adoecendo. Estou cansada de mim, de tudo. Estou
cansada até de Gennaro: o destino dele, se tiver sorte, é acabar num
lugar como este, rastejando por cinco liras a mais diante de algum
patrão. E aí? Aí, Cerullo, assuma suas responsabilidades e faça o que
sempre teve em mente: assustar Soccavo, tirar dele o vício de comer as
operárias dentro da maturação. Mostre o que você soube preparar ao
estudante com cara de lobo. Naquele verão em Ischia. As bebidas, a casa
de Forio, a cama luxuosa em que esteve com Nino. O dinheiro vinha deste
lugar, deste mau cheiro, destes dias passados no asco, desta labuta paga
com poucas liras. O que eu cortei aqui? Está saindo pra fora uma gosma
amarelada, que nojo. O mundo gira, mas pelo menos, se cair, se quebra.”
(História de quem foge e de quem fica, p. 155)
(8)
"Senti uma angústia insuportável. Ela temia acima de tudo o tremor e a
torção da matéria, odiava qualquer forma de mal-estar, detestava a
cavidade das palavras quando se esvaziavam de todo sentido possível. Por
isso rezei para que aguentasse.
(...)
A síntese que Lila me fez
do episódio foi quase divertida. Não é verdade — disse — que só se sofre
no primeiro filho e depois tudo é mais fácil: sempre há sofrimento. E
desfiou uma série de argumentos ferozes e irônicos. Achava insensata
aquela vontade de guardar o filho no ventre e, ao mesmo tempo, querer
expeli-lo. É ridículo — disse — que essa adorável hospitalidade de nove
meses seja seguida por uma ânsia de expulsar o hóspede da maneira mais
violenta. Sacudia a cabeça indignada com a incoerência do mecanismo.
Coisa de louco — exclamou recorrendo ao italiano —, é o próprio
organismo que se rebela contra você, ou melhor, se revolta até se tornar
o pior inimigo de si, até atingir a pior dor que existe. Ela
experimentara por horas e horas chamas frias e afiadas na base da
barriga, um fluxo insuportável de dor que a esmagava brutalmente no
fundo do ventre e depois recuava, arrombando-lhe os rins. Vamos —
ironizou —, você é uma mentirosa, onde está a bela experiência. E jurou,
dessa vez séria, que nunca mais engravidaria." (P. 210)
(9)
"Não, Nino já não me convencia como antigamente. Expressava-se — não sei
como dizer — de modo provocador e ao mesmo tempo opaco, como se justo
ele, que exaltava a visão de longo alcance, agora só tivesse olhos para
os movimentos e contramovimentos cotidianos de uma gestão que para mim,
para seus próprios amigos, parecia podre desde os fundamentos. Chega,
insistia, vamos parar com a aversão infantil ao poder, é preciso estar
nos lugares onde as coisas nascem e morrem: partidos, bancos,
televisões. E eu o escutava, mas, quando se dirigia a mim, baixava o
olhar. Não escondia mais de mim mesma que a conversão dele em parte me
entediava, em parte me dava a impressão de assinalar uma inconsistência
que o arrastava para baixo.
(...)
Me convenci de que Nino
encorajava naquelas pessoas uma espécie de impulso materno a fim de que
fizessem, no limite do possível, o que lhe pudesse ser útil.
(...)
Embora
a senhora tivesse posto o marido na berlinda quase para incluí-lo na
conversa, ele o ignorava e continuava falando com sua voz aveludada.
Nino tinha uma genuína curiosidade pelo universo feminino. Mas — isso
agora eu sabia muito bem — não se parecia nem um pouco com os homens
que, naqueles anos, davam a entender que haviam cedido ao menos um pouco
de seus privilégios. Eu pensava não só em professores, arquitetos e
artistas que frequentavam nossa casa e ostentavam uma espécie de
feminilização nos comportamentos, nos sentimentos, nas opiniões; mas
também no marido de Carmen, Roberto, que era extremamente solícito, e
Enzo, que sem hesitar teria sacrificado todo seu tempo às necessidades
de Lila. Nino se entusiasmava sinceramente pelo modo como as mulheres
buscavam a si mesmas. Não havia jantar em que não repetisse que pensar
junto com elas era, agora, a única saída para um verdadeiro pensar. Mas
mantinha seus espaços e suas numerosas atividades bem protegidos, punha
em primeiro lugar sempre e apenas a si mesmo, não cedia um instante de
seu tempo.
(...)
“É isso mesmo. Quer libertar a mulher dos outros, mas a dele, não.”" (P. 227)
(10)
"Repentinamente passei a olhar a cidade e o bairro, e sobretudo o
bairro, como parte importante de minha vida, da qual não só não deveria
prescindir, mas também era essencial ao êxito de meu trabalho. Foi um
salto brusco, passei da suspeita a uma prazerosa percepção de mim. O que
eu havia sentido como um precipício adquiriu não apenas dignidade
literária, mas também me pareceu uma escolha decisiva no campo cultural e
político.
(...)
Ela não havia gostado de meu livro, tinha sido
muito dura, cedera a um dos raros choros de sua vida quando teve de me
ferir com seu julgamento negativo. Mas não lhe queria mal por isso, ao
contrário, estava contente de que tivesse errado. Desde a infância eu
lhe atribuía um peso excessivo, e agora me sentia quase aliviada.
Finalmente estava claro que aquilo que eu era não era ela, e vice-versa.
Sua autoridade não me era mais necessária, eu tinha a minha. Me senti
forte, não mais vítima de minhas origens, mas capaz de dominá-las, de
lhes dar uma forma, de resgatá-las para mim, para Lila, para qualquer
um. O que antes me puxava para baixo, agora era a matéria que me levaria
mais para o alto."
(P. 254 - 255)
(11) "Mesmo agora, quando já
sabia da doença de minha filha, não conseguia espantar a satisfação por
aquilo que me tornara, o gosto de me sentir livre, perambulando pela
Itália, o prazer de dispor de mim como se não tivesse um passado e tudo
estivesse começando agora." (P. 289)
(12) "Nada de comparável a
uma máquina de escrever, nem a uma elétrica. Ela acariciava com a polpa
dos dedos as teclas cinza e a escrita nascia sobre a tela em silêncio,
verde como a grama recém-germinada. Aquilo que havia em sua cabeça,
preso a sabe-se lá que córtex cerebral, parecia despejar-se no exterior
como por milagre, fixando-se no nada da tela. Era potência que, mesmo
passando por ato, permanecia potência, um estímulo eletroquímico que se
transformava imediatamente em luz. Pareceu-me a escrita de Deus como
deve ter sido no Sinai, na época dos mandamentos, impalpável e tremenda,
mas com um efeito concreto de pureza. Magnífico, falei. Eu ensino a
você, ela disse. E de fato me ensinou, e começaram a alongar-se
segmentos brilhantes, hipnóticos, frases que eu dizia, frases que ela
dizia, nossas discussões voláteis que iam se imprimir no poço escuro da
tela como rastros sem espuma. Lila escrevia, eu revisava. Então ela
apagava com uma tecla, com outras fazia desaparecer todo um bloco de luz
e o fazia ressurgir mais acima ou mais abaixo num instante. Mas logo em
seguida era Lila quem mudava de ideia, e tudo se modificava de novo num
segundo, movimentos fantasmáticos, o que está aqui ou não está mais ou
já está lá. E não há necessidade de caneta, de lápis, não há necessidade
nem mesmo de mudar de folha, colocar outra no rolo. A página é a tela,
única, jamais o traço de um adendo, aparentemente sempre a mesma. E a
escrita é incorruptível, as linhas estão todas alinhadas com perfeição,
emanando um sentimento de limpeza mesmo agora, que estamos somando as
imundícies dos Solara às imundícies de meia Campânia.Trabalhamos durante
dias. O texto baixou do céu à terra com o barulho das impressoras,
concretizou-se em pontinhos pretos depositados no papel. Lila o achou
inadequado, reescrevemos, foi difícil corrigi-lo. Ela estava irritada,
esperava mais de mim, achava que eu soubesse responder a todas as suas
perguntas, se enraivecia porque tinha certeza de que eu era um poço de
ciência e no entanto, a cada linha, descobria que eu ignorava a
geografia local, os meandros das secretarias, o funcionamento dos
conselhos municipais, as hierarquias de um banco, os delitos e as penas.
Entretanto, contraditoriamente, há tempos não a sentia tão orgulhosa de
mim e de nossa amizade. Precisamos destruí-los, Lenu, e se isso não
bastar vou matá-los. Nossas cabeças se chocaram — pensando bem, pela
última vez — uma contra a outra, demoradamente, e se fundiram até se
tornar uma só. Por fim, precisamos nos resignar e aceitar que tudo
estava terminado: inaugurava-se o tempo pálido das coisas consumadas.
Ela reimprimiu tudo pela enésima vez, eu coloquei nossas páginas num
envelope e as enviei ao diretor da editora, pedindo que mostrasse o
material aos advogados. Preciso saber — expliquei a ele por telefone —
se esse material é suficiente para pôr os Solara na cadeia." (P. 308, 309)
(13)
"Carmen foi a primeira a intuir que o consenso que se formara em torno
de nossa amiga antes do desaparecimento de Tina, e a solidariedade que
se manifestara em seguida, eram ambos superficiais, e que por baixo
proliferava em relação a ela uma velha aversão. Veja só, me disse,
antigamente a tratavam como se fosse Nossa Senhora, e agora, ao
contrário, passam direto por ela sem nem sequer um olhar. Comecei a
prestar atenção e me dei conta de que era exatamente assim. No fundo as
pessoas pensavam: lamentamos que tenha perdido Tina, mas isso significa
que, se você realmente fosse aquilo que queria que acreditássemos, nada
nem ninguém mexeria contigo. Na rua, quando estávamos juntas, começaram a
cumprimentar a mim, e não a ela. Seu ar inquieto e o nimbo de desolação
que víamos nela eram preocupantes. Enfim, a parte do bairro que se
habituara a considerar Lila uma alternativa aos Solara se retraiu
decepcionada. Não só. Tomou pé uma iniciativa que nos primeiros dias
pareceu afetuosa, mas logo se mostrou pérfida. No portão de casa, na
porta da Basic Sight, apareceram bilhetes comovidos escritos a Lila ou
diretamente a Tina, até poesias copiadas de livros didáticos. Depois se
passou a velhos brinquedos trazidos por mães, avós, crianças. Depois
vieram prendedores de cabelo, fitas coloridas, sapatinhos gastos. Depois
apareceram bonecas costuradas à mão, com caretas horríveis, manchadas
de vermelho, e bichos mortos enrolados em trapos imundos. Então Lila
recolhia tudo com calma e depois jogava no lixo, mas de repente começava
a berrar maldições terríveis contra qualquer um que passasse ali,
especialmente contra os meninos que a observavam de longe; e assim ela
passou de mãe que suscitava pena a louca que espalhava o terror. Na vez
em que uma menina adoeceu gravemente depois de Lila a amaldiçoar ao
vê-la escrever com giz no portão: Tina foi comida pelos mortos, antigos
rumores se somaram aos novos e ela foi cada vez mais isolada, como se só
sua visão já trouxesse desgraça." (P. 344)
(14) "Achei uma
organização compacta e elegante para seu balbucio digressivo. Escrevi
sobre meu quadril, sobre minha mãe. Agora que eu era cada vez mais
admirada, admitia sem incômodo que falar com ela me suscitava ideias, me
levava a estabelecer nexos entre coisas distantes. Naqueles anos de
vizinhança, eu no andar de cima, ela no de baixo, isso tinha acontecido
com frequência. Bastava um leve empurrão e a cabeça, que parecia oca, se
descobria cheia e viva. Atribuía a ela uma espécie de visão de longo
alcance, atribuiria pela vida inteira, e não via nisso nada de mal.
Dizia a mim mesma que ter maturidade era isso, reconhecer que
necessitava de seus empurrões. Se antigamente eu escondia até de mim
aquela ignição que ela me provocava, agora tinha orgulho disso, tinha
até escrito a respeito em algum lugar. Eu era eu e, justamente por esse
motivo, podia abrir espaço para ela em mim e lhe dar uma forma
resistente. Já ela não queria ser ela e, portanto, não era capaz de
fazer o mesmo. A tragédia de Tina, o físico debilitado, a cabeça em
desordem com certeza concorriam para suas crises. Mas o mal-estar que
chamava de desmarginação tinha aquela razão de fundo." (P. 370)
(15) "Ironizou meu semifeminismo, meu
semimarxismo, meu semifreudismo, meu semifoucaultismo, meu
semisubversivismo. Somente comigo — disse com um tom um pouco mais
ríspido — você nunca usou meios-termos." (P. 394)
(16) "A certa
altura, enquanto Enzo me falava com frases embargadas e densas, notei
suas lágrimas à luz dos faróis e entendi que não falava apenas de Lila,
mas estava tentando expressar também o próprio sofrimento. Aquela viagem
com ele foi importante, ainda hoje para mim é difícil imaginar um homem
com uma sensibilidade mais fina que a dele. No início me falou o que
todo dia, toda noite, naqueles quatro anos, Lila lhe sussurrara ou
gritara. Depois me incentivou a contar sobre meu trabalho e minhas
insatisfações. Falei-lhe das meninas, dos livros, dos homens, dos
ressentimentos, da necessidade de aprovação. E acenei àquele meu
escrever incessante, que agora se tornara uma obrigação, me esforçava
dia e noite para me sentir presente, para não ser posta à margem, para
lutar contra quem me considerava uma mulherzinha intrusiva e sem
talento: perseguidores — murmurei — cujo único objetivo é me fazer
perder público, mas não porque são movidos por sabe-se lá que motivos
elevados, e sim pelo gosto de impedir que eu melhore, ou visando
reservar a si e a seus protegidos um miserável poder em prejuízo meu.
Deixou que eu desabafasse, elogiou a energia que eu punha nas coisas.
Veja — disse — como você se apaixona. Essa sua inquietação a ancorou ao
mundo que você escolheu, lhe deu uma competência ampla e detalhada sobre
ele, acima de tudo a engajou em todos os sentimentos. Assim a vida a
levou por aí, e Tina, para você, é certamente um episódio atroz, lhe dá
tristeza pensar nele, mas é também, a essa altura, um fato distante. Já
para Lila, em todos esses anos, o mundo desabou sobre ela quase por
acaso e escoou no vazio deixado pela filha como a chuva que cai pela
calha. Ela continuou presa a Tina, e lhe veio o rancor contra tudo o que
permanece vivo, que cresce e prospera. Claro, disse, ela é forte, me
trata malíssimo, invoca com você, diz coisas horríveis. Mas você nem
imagina quantas vezes ela desmaiou enquanto parecia tranquila, lavando
os pratos ou olhando o estradão pela janela." (P. 411)
(17) "Quando há silêncio demais, disse, minha cabeça se enche de ideias, não
dê importância. Somente nos romances ruins as pessoas sempre pensam a
coisa certa, sempre dizem a coisa certa, todo efeito tem sua causa, há
os simpáticos e os antipáticos, os bons e os maus, tudo no fim nos
consola. Murmurou: pode ser que Tina volte esta noite, e então de que
adianta saber como foi, o essencial é que ela esteja de novo aqui e me
perdoe pela distração. Me perdoe você também, disse, e me abraçou,
concluiu: vá, vá, faça coisas ainda mais lindas do que já fez até agora.
Eu fiquei perto de Imma também pelo medo de que alguém a levasse, e
você também continuou gostando realmente de meu filho mesmo quando sua
filha o deixou. Quanta coisa você suportou por ele, obrigada. Fico muito
contente de termos sido amigas por tanto tempo e de sermos ainda.
(...)
Aquela
ideia de que tinham raptado Tina pensando que fosse minha filha me
transtornou, mas não porque achasse que tivesse algum fundamento. Pensei
sobretudo no emaranhado de sentimentos obscuros que a havia gerado e
tentei pôr ordem naquilo. Depois de tanto tempo, até me ocorreu que
Lila, por motivos de todo ocasionais — sob as mais insignificantes
ocasiões se ocultam léguas de areia movediça —, acabara chamando sua
filha com o nome de minha adorada boneca, aquela que, quando pequena,
ela jogara no fundo de um porão. Foi a primeira vez, recordo, que
fantasiei sobre aquilo, mas não aguentei por muito tempo, cheguei à
beira de um poço escuro com alguns reflexos de luz e recuei. Toda
relação intensa entre seres humanos é cheia de armadilhas e, caso se
queira que dure, é preciso aprender a desviar-se delas. Foi o que fiz
também naquela circunstância e, ao final, tive a impressão de apenas
confirmar pela enésima vez quanto nossa amizade era esplêndida e
tenebrosa, como tinha sido longo e complicado o sofrimento de Lila, como
ele ainda durava e duraria para sempre. Mas fui embora para Turim
convencida de que Enzo tinha razão: Lila estava bem longe de uma velhice
tranquila dentro dos limites que se impusera. A última imagem que me
ofereceu de si foi a de uma mulher de cinquenta e um anos que parecia
ter dez a mais e que de tanto em tanto, enquanto falava, era tomada por
incômodas ondas de calor e ficava vermelho fogo. As manchas lhe subiam
até o pescoço, o olhar se perdia, agarrava a barra da saia com as mãos e
se abanava, mostrando a mim e a Imma a calcinha." (P. 451)
(18) "Em alguns períodos aquela ânsia tinha sido mais verdadeira, em
outros, menos. Lembro uma tirada pérfida que partia de minha
notoriedade. Eh, disse certa vez, quantas histórias por causa de um
nome: famoso ou não, é só uma fitinha em torno de um saco enchido de
qualquer jeito com sangue, carne, palavras, merda e pensamentozinhos.
Zombou longamente de mim sobre aquele ponto: solto a fita — Elena Greco —
e o saquinho fica ali, funciona do mesmo modo, obviamente a esmo, sem
méritos nem deméritos, até que se rompe. Em seus dias mais sombrios,
dizia com uma risada ríspida: quero desatar meu nome, desfiá-lo, jogá-lo
fora, me esquecer dele. Mas noutras ocasiões estava mais relaxada.
Acontecia — digamos — de eu ligar para ela esperando convencê-la a me
falar de seu texto e, embora ela negasse com força sua existência,
continuando a se esquivar, sentia que meu telefonema a surpreendera em
pleno momento criativo. Certa noite ela estava num feliz entorpecimento.
Fez seus discursos habituais sobre a demolição de toda hierarquia —
tantas histórias sobre a grandeza deste e daquele, mas qual o mérito de
ter nascido com certas qualidades, é como admirar o cestinho do bingo
quando você o chacoalha e depois saem os números bons —, mas se
expressou com fantasia e ao mesmo tempo com precisão, percebi o prazer
de inventar imagens. Ah, como ela sabia usar as palavras quando queria.
Dava a impressão de custodiar um sentido secreto e próprio que anulava o
sentido de tudo. Foi isso, talvez, que começou a me entristecer." (P. 455)
(19)
"Eu amava Lila. Queria que ela durasse. Mas queria que fosse eu a
fazê-la durar. Achava que era minha missão. Estava convicta de que ela
mesma, desde menina, me atribuíra essa tarefa." (P. 463)
(20)
"Ela sempre agiu assim: quando eu não me dobro, ela me exclui, me pune,
me estraga até o prazer de ter escrito um bom livro. Estou no limite.
Esse seu jeito de encenar o próprio sumiço, além de me preocupar, me
exaspera. Talvez a pequena Tina não seja o ponto, talvez não seja o
ponto nem seu fantasma, que continua a obcecá-la tanto na forma da
menina de quase quatro anos, a mais resistente, quanto na forma lábil da
mulher que hoje, assim como Imma, teria trinta anos. O ponto, sempre e
simplesmente, somos nós duas: ela, que quer que eu dê o que sua natureza
e as circunstâncias a impediram de dar, e eu, que não consigo dar o que
ela pretende; ela, que se irrita com minha insuficiência e por birra
quer me reduzir a nada, assim como fez consigo, e eu, que escrevi meses e
meses e meses para lhe dar uma forma que não perca os contornos e
superá-la e acalmá-la e assim, por minha vez, me acalmar." (P. 467)