A amiga genial - Elena Ferrante
A amiga genial é o primeiro livro da tetralogia napolitana, atualmente a
obra mais aclamada de Elena Ferrante, publicada originalmente na Itália
entre 2011 e 2014.
Nas últimas semanas li a tetralogia pela
segunda vez. A primeira, há pouco mais de um ano, no meio da
pandemia, foi quando fui totalmente absorvida pela história de Lila e Lenu,
num período em que foi fundamental poder me identificar com suas histórias
em algum nível. Já naquela época eu queria muito escrever sobre elas,
mas não consegui.
Por isso, resolvi reler e finalmente escrever
sobre a obra que se tornou uma das minhas preferidas da vida, enquanto
acompanhava a terceira temporada da série na HBO. Foi um trabalho maior
do que a maioria das outras resenhas que já escrevi. Dividi em uma
resenha por livro, mas como para mim é difícil separá-los, por terem uma
história tão contínua, muitas vezes aparecerão citações de coisas que
acontecem nos próximos volumes. Além disso, tentei organizar de uma
forma que ficasse mais coerente com o que eu tenho a dizer sobre eles do
que com a ordem dos acontecimentos. Nesse primeiro texto, por exemplo,
não abordo diretamente a desmarginação de Lila, embora o conceito já
apareça neste livro. Preferi abordá-lo com profundidade no último texto,
juntando todas as peças que Elena Ferrante nos fornece sobre o assunto
durante a narrativa.
Deixei as citações que me guiaram durante a
escrita do texto como notas no final da página, com exceção de uma ou
outra, para que o texto ficasse mais fluido de ler.
Dito isso, vamos à resenha (com spoilers).
Lenu recebe um telefonema: Lila desapareceu. Embora Lenu, como
narradora, desde então nos sinalize o quão interligadas são suas vidas,
ela também diz não estar surpresa ou preocupada. Na verdade, mostra-se
até mesmo irritada com Rino, filho de Lila, quem lhe telefonou para
avisar do desaparecimento da mãe. Assim começa A amiga genial, com uma
introdução que diz muito sobre a complexa relação entre Lila e Lenu, que
nesse ponto já se estende a toda uma vida, da infância à terceira
idade. E que nos intriga a conhecer essa trajetória ao longo dos quatro
livros da tetralogia, a história que Lenu então começa a escrever,
convencida a recuperar cada vestígio que Lila desejou apagar.
“Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio, incomodada com a ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele. Seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu. E, como a conheço bem – ou pelo menos acho que conheço –, tenho certeza de que encontrou o meio de não deixar sequer um fio de cabelo neste mundo, em lugar nenhum.” (P. 15)
Lenu é o apelido de Elena Greco; Lila, de Raffaella Cerullo. Elas nasceram e foram criadas em um bairro pobre de Nápoles, alguns anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A guerra, assim como outras questões sociais daquele tempo, transparecem no ambiente do bairro - na miséria, na violência, nas relações de poder, de subjugação das mulheres -, que as duas meninas vivenciam desde a infância (1).
Lenu começa descrevendo esse cenário e contando como começou sua amizade
com Lila. Não foi algo espontâneo. Elas brincavam no mesmo pátio e
estudavam na mesma escola, ambas as melhores de sua classe. Mas, apesar
das semelhanças, sempre foram muito diferentes. Lila rebelde, reativa,
capaz de aprender qualquer coisa rapidamente, de aparência displicente e
feroz. Lenu tímida, gentil, sempre desejosa de agradar à professora,
esforçada para aprender, insegura. Antes de se tornarem amigas, ela já
observava a Lila, sentia-se atraída para ela. Ainda assim, é Lila que
provoca o incidente que enfim as une, num dia que resolveram trocar suas
bonecas, quando Lila joga a boneca de Lenu num buraco escuro no canto
da rua. Lenu repete o ato, decidida a não ficar para trás da outra. Elas
saem em busca das bonecas, e não achando-as, Lila diz que foi dom
Achille quem pegou. Vão então atrás dele, numa grande aventura para
confrontar quem elas imaginavam como um monstro do bairro, e na qual
Lenu marca o início de sua amizade. Porém, em vez das bonecas, que ele
diz não ter pego, elas ganham dinheiro, com que compram seu primeiro
livro, Mulherzinhas, de Louisa May Alcott.
“No início eu ficava escondida atrás de uma esquina, espichando-me para ver se Lila chegava. Depois, vendo que ela não se movia, me forçava a alcançá-la, passava-lhe umas pedras, atirava-as eu também. Mas o fazia sem convicção, fiz muitas coisas em minha vida, mas jamais convicta, sempre me senti um tanto descolada de minhas próprias ações. Ao contrário, Lila desde pequena tinha – agora não saberia dizer se já aos seis ou sete anos, ou quando subimos juntas as escadas para a casa de dom Achille, dos oito para os nove – a marca da decisão absoluta. Quer empunhasse a haste tricolor da caneta, uma pedra ou o corrimão de escadas escuras, ela passava a ideia de que, não importa o que acontecesse – cravar com um arremesso preciso a ponta da caneta na madeira do banco, disparar bolinhas molhadas de tinta, atingir os meninos do campo, subir até a porta de dom Achille –, ela o faria sem hesitar.” (p. 26)
(...)
Algo me convenceu, então, de que se eu caminhasse sempre atrás dela, seguindo sua marcha, o passo de minha mãe, que entrara em minha mente e não saía mais, por fim deixaria de me ameaçar. Decidi que deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca perdê-la de vista, ainda que ela se aborrecesse e me escorraçasse.” (P. 38)
Desde então, a relação das duas garotas é marcada simultaneamente por suas semelhanças e diferenças, encontros e desencontros, aproximações e afastamentos. Quando terminam os primeiros anos de escola, a família de Lila a impede de continuar estudando, apesar de sua incansável resistência, o que inclui um episódio violento em que seu pai a atira pela janela. A família de Lenu também não queria que continuasse a estudar, mas a professora os convence a deixar. Esse mesmo processo de convencimento e de apoio a Lenu por parte da professora se repete ano após ano. Nesse ponto há uma ruptura importante entre elas: enquanto Lenu tem a chance de traçar uma vida diferente de seus antepassados e de sair do ambiente onde nasceu, Lila é aprisionada à realidade do bairro, começando a trabalhar na sapataria de seu pai, junto a seu irmão Rino.
O sair e ficar é um tema importante na tetralogia (vide o título do terceiro volume, “História de quem foge e de quem fica”), apresentando-se pela primeira vez pouco antes do final do último ano em que as meninas foram colegas de classe. Nessa ocasião, por sugestão de Lila, as duas matam aula para ir ver o mar pela primeira vez. No meio do caminho começa a chover e Lila fica insegura, enquanto Lenu sente uma grande sensação de liberdade, preferindo continuar apesar da chuva. No entanto, elas acabam voltando, e Lenu leva uma surra da mãe por ter matado aula. No dia seguinte, Lila lhe pergunta se seus pais ainda a deixarão continuar estudando, o que acende em Lenu uma desconfiança sobre sua intenção no convite de ir até o mar.
“Verificara-se uma curiosa inversão de comportamento: eu, apesar da chuva, teria continuado o caminho, me sentia longe de tudo e de todos, e a distância – o descobrira pela primeira vez – apagava dentro de mim qualquer vínculo, qualquer preocupação; Lila bruscamente se arrependera do próprio plano, tinha renunciado ao mar, quisera voltar aos limites do bairro. Eu não conseguia entender.
(...)
Seria possível? Ela me arrastara consigo torcendo para que meus pais, por punição, não me mandassem mais para a escola média? Ou me trouxera apressadamente de volta justo para evitar aquela punição? Ou – me pergunto hoje – desejou em momentos diversos ambas as coisas?” (P. 72)
Esse também é um momento emblemático na relação de Lila e Lenu, em sua ambivalência quanto ao que Lila pensava e no comportamento das duas meninas frente à possibilidade de sair do lugar onde nasceram. Logo, Lenu passará a estudar fora do bairro, e cada vez mais longe, enquanto Lila nunca deixará aquele lugar, como nos conta Lenu já nas primeiras páginas.
Desde o início de sua relação, e apesar de tudo que as colocará em conflito, Lenu nunca deixa de se espelhar em Lila. Sua força, sua inteligência e sua determinação como que motivam Lenu a desafiar seus próprios limites e inseguranças, mesmo que só para que a outra a reconheça como igual ou até superior em capacidade. Comumente, Lila é vista como cruel, com todas as suas características que destoam, com sua capacidade de manipular situações para ter o que deseja. Por outro lado, os sentimentos e intenções de Lenu também são ambivalentes, com a diferença que ela os guarda para si. Ela quer bem a sua amiga e sofre por sua impossibilidade de continuar estudando, ao mesmo tempo em que se sente bem pela possibilidade de ser a melhor (2).
Enquanto Lenu continua seus estudos, Lila começa a trabalhar na
sapataria. Há períodos em que Lila parece se afastar, mas mesmo nesses
momentos, Lenu percebe que continua a incorporar algo de sua amiga em
sua própria vida, a se inspirar nela (3). E nos momentos que passam
juntas, quando Lenu volta da escola, elas compartilham algo que não
encontram em mais ninguém ali: a capacidade de falar e ser compreendida,
de ouvir e se deparar com novas ideias (4).
Logo Lenu descobre
que Lila continua a estudar e a ler, em segredo, também motivada a não
ficar para trás da amiga, enquanto desenvolve uma nova ocupação na
sapataria: fabricar um novo modelo de sapatos, desenhados por ela mesma,
junto a seu irmão Rino, sem que o pai saiba.
“Naquele momento tão tremendo, cheio de luz e clamor, fingi-me sozinha dentro do novo da cidade, nova eu mesma com toda a vida pela frente, exposta à fúria movente das coisas, mas certamente vencedora: eu, eu e Lila, nós duas com aquela capacidade que juntas – somente juntas – tínhamos de captar a massa de cores, de sons, coisas e pessoas, e depois narrá-las e dar-lhes força.” (P. 132)
Nesse período, elas passam da infância à adolescência. A insegurança de Lenu começa a aumentar devido às mudanças físicas, à dificuldade das matérias e de estudar sem apoio da família. Quanto a Lila, assim que começa a deixar para trás os traços infantis, muitos jovens do bairro passam a desejá-la. De repente, como todas as mulheres em sua realidade, elas também passam a ser vítimas de assédios, e Lila se vê cercada de homens poderosos no bairro que competem por sua reciprocidade.
É também nessa época que Lila passa a desenvolver ainda mais seu olhar agudo sobre a realidade da sociedade que a cerca. Ela aprende com seus amigos trabalhadores sobre o facismo, o comunismo, sobre toda a corrupção e exploração que rege a prosperidade histórica dos mais ricos do bairro. E passa a desprezar essas pessoas.
“Disse que não sabíamos de nada, nem quando éramos pequenas nem agora, e que por isso não estávamos em condição de compreender nada, que cada coisa do bairro, cada pedra ou pedaço de pau, qualquer coisa já existia antes de nós, mas tínhamos crescido sem nos dar conta disso, sem sequer pensar no assunto. E não só a gente. O pai dela fazia de conta que, antes, não tinha acontecido nada. A mãe dela, minha mãe, meu pai, até Rino faziam o mesmo. No entanto, antes, a charcutaria de Stefano era a marcenaria de Peluso, o pai de Pasquale. No entanto o dinheiro de dom Achille tinha sido acumulado antes. Assim como o dinheiro dos Solara. Ela havia feito o teste com o pai e com a mãe. Ambos não sabiam de nada, não queriam falar nada. Nada de fascismo, nada de rei. Nada de abusos, perseguições, exploração. Odiavam dom Achille e tinham medo dos Solara. Mas passavam por cima disso e iam fazer suas compras tanto com o filho de dom Achille quanto com os Solara, inclusive nos mandando até lá. E votavam nos fascistas, nos monarquistas, como os Solara queriam que fizessem. E pensavam que o que tinha ocorrido antes era passado e, por apego à tranquilidade, davam o assunto por encerrado; e no entanto estavam dentro, dentro das coisas de antes, e nos mantinham ali dentro também, e assim, sem o saber, continuávamos o que eles eram.” (P. 157)
Lenu, por outro lado, acompanha essas conversas, mas parece mais centrada em seu mundo interior, em sua necessidade de agradar, de estudar para sair daquelas condições. Muitas vezes, ela não entende as ideias de Lila.
Apesar do amadurecimento precoce a que são submetidas, elas ainda são adolescentes com certa ingenuidade, o que gera muitas ilusões.
Os sapatos que Lila cria com o irmão, quando finalmente revelados ao pai, geram descrença e tumulto, com o pai se sentindo traído e Rino revoltado.
Já Lenu se ilude em sua paixão por Nino Sarratore, que também fora seu colega de classe e de bairro na infância. Naquela época, ela já gostava dele, também um dos melhores da escola, mas sua família foi embora em meio a um escândalo provocado pelo pai de Nino, Donato. Ele era visto com estranheza no bairro por ser poeta, escrever num jornal, e por não expressar o mesmo modelo de masculinidade violenta da maior parte dos homens. Porém, Melina, uma viúva de saúde mental frágil, se apaixonou por ele depois de um período em que ele supostamente teria ajudado sua família, o que gerou um conflito com a esposa de Donato e sua então saída do bairro.
Lenu volta a encontrar Nino no liceu (colegial), embora não sejam da mesma turma. A princípio, pensa que ele não a reconhece, e não tem coragem de se aproximar. Mas eles tornam a se reencontrar em uma de suas férias de verão, quando Lenu vai trabalhar na pousada de uma senhora, quando se consolida nela a alegria de se afastar do bairro por um tempo (5).
Após alguns dias, a família de Nino vai se hospedar ali, a princípio sem
ele. Lenu fica encantada com aquela família, com a simpatia de Donato,
com as crianças que se afeiçoam a ela, e com Marisa, um pouco mais nova
que ela, com quem faz amizade. Quando Nino chega, Lenu tenta se
aproximar dele, mas não sabe bem como, pois ele é frequentemente evasivo
e não fica ali por muito tempo, odeia o pai. Lenu não entende porque,
até que, uma noite, é abusada por Donato. Ela volta ao bairro no dia
seguinte, mas, depois do início das aulas, se vê propositalmente
afastada de Nino por causa da lembrança do pai.
Mais à frente na
narrativa, Nino pede que Lenu escreva um artigo para uma revista em que
escreve, e ela novamente pede a ajuda de Lila. Lenu parece ver a
escrita como o deságue de todo o seu esforço, de seus estudos, e até
mesmo de sua relação com Lila, cujas conversas muitas vezes inspiraram
seus melhores deveres escolares. Além disso, ela conserva a visão
infantil de que publicar um livro era sinônimo de ascender socialmente. Porém, um tempo depois de entregar o artigo a Nino, ele acaba não sendo publicado, e Lenu sofre.
Apesar
do amor, Lenu muitas vezes critica Nino mentalmente (6). Me parece que,
desde a infância, o que a atrai em Nino é a possibilidade que
representa de sair do mundo em que nasceram, de ser diferente (7).
Paralelamente, esse é um período de muito autoconhecimento de Lenu, como
também deve ter sido para Lila, se pudéssemos ler a sua experiência.
Apesar de muitas inseguranças, Lenu começa a perceber, além de seu
impulso por navegar novos espaços, sua habilidade com as palavras e de
conciliar opiniões, tanto na sala de aula quanto em suas relações
sociais. Além disso, embora sempre apaixonada por Nino, a necessidade de
ter um namorado a leva a ficar com Antonio, mecânico do bairro, com
quem também convive desde a infância. Mesmo sem amá-lo intensamente, é
com ele que Lenu começa a descobrir os seus desejos, mais uma parte de
sua complexidade como pessoa. Embora ela muitas vezes deseje desistir
dos estudos e se conformar aos destino que terão a maior parte de suas
colegas do bairro, devido aos muitos obstáculos que se impõem, todas
essas percepções de si mesma a empoderam.
“Sem esforço soube separar minhas palavras de mim: com todos os professores que se mostraram hostis fui muito respeitosa, solícita, diligente, colaborativa, tanto que logo voltaram a me considerar uma jovenzinha a quem podiam perdoar certas afirmações bizarras. Assim descobri que eu sabia fazer como a Galiani: expor com firmeza minhas opiniões e simultaneamente fazer mediações, conquistando o apreço de todos com um comportamento irrepreensível.” (P. 297)
Lila também percebe o crescimento de Lenu. Mas é mais fácil para nós reconhecermos isso do que a própria narradora, que via a outra sempre como a melhor e a si mesma como uma sombra, às vezes com resignação, às vezes com admiração, às vezes com desconfiança, e de todas as formas ao mesmo tempo. Não é à toa que Lila que chama a Lenu sua “amiga genial”.
Já a maior ilusão de Lila é Stefano Carraci, filho de dom Achille, que fora assassinato há anos, e de uma das famílias mais prósperas do bairro, abaixo apenas da família Solara. Stefano diz querer recomeçar uma nova ordem com sua geração. Enquanto isso, Marcello e Michele Solara nunca puderam disfarçar sua agressividade, mesmo que sob a capa da boa educação. Marcello importuna Lila continuamente para que se case com ele, tentando comprar inclusive sua família com presentes, mas ela se recusa veementemente. Porém, sob a pressão da insistência, da família, desejosa de sair da miséria, e da promessa de mudança criada por Stefano, Lila fica noiva deste. Embora Lenu acreditasse que se amavam, os leitores, através das pistas dadas pela narradora já mais velha, percebem a fragilidade desse afeto, tanto dele por ela quanto dela por ele. Nessa época, Stefano investe na expansão da sapataria dos Cerullo para que os sapatos que Lila criou sejam vendidos (8).
No fim, ainda na festa de casamento, Stefano se mostrará por completo,
sem mais necessidade de esconder que o que realmente ama é o dinheiro,
continuando a se revelar ainda mais cruel em História do novo sobrenome.
No entanto, na fase dourada do noivado, Lila passa a adotar uma
postura peculiar, pela primeira vez ostentando roupas caras, agindo de
forma esnobe, usando a parcela de poder que o dinheiro lhe traz nesse
momento para exercer influência no bairro, manipulando o cenário
conforme seus planos sempre imprevisíveis para os outros. Em muitos
momentos, tanto nesse período quanto em toda a tetralogia, ela parece se
apropriar da personagem que os outros lhe atribuem, como uma forma de
sobreviver e de se impor de alguma forma naquele espaço em que seus
talentos, sua beleza e sua inteligência estão em constante disputa pelos
interesses alheios (9).
“Era essa a última novidade que ela inventara? Queria sair do bairro permanecendo no bairro? Queria arrastá-lo para fora de si, arrancar-lhe a antiga pele e impor-lhe uma nova, adequada à que ela aos poucos ia inventando?” (P. 272)
Essa citação é interessante porque também conta da relação de Lila com o espaço. Enquanto Lenu deseja deixar para trás aquele lugar, a outra faz dele o seu mundo todo, é ali que ela por toda a vida tentará exercer uma transformação, seja qual for. Posteriormente, veremos como a desmarginação presente na vida de Lila parece contribuir para esse comportamento.
Essa postura arrogante afasta Lenu, mas ela nunca deixa de voltar para Lila sempre que a chama, mesmo que Lila frequentemente não demonstre interesse pela amiga. Sim, muitas vezes Lila é insensível e até mesmo abusiva mentalmente com Lenu, ao mesmo tempo em que é uma vítima no ambiente em que vivem, uma adolescente de quem se exigiu comportamentos de uma pessoa madura.
Além da oportunidade de estudar e sua capacidade de conciliação, Lenu também possui um egoísmo diferente de Lila. Lenu pensa primeiro em sua sobrevivência, desprezando às vezes até a família, enquanto Lila, com sua percepção do todo, desenvolve a sobrevivência dentro do contexto em que já está inserida.
Nem uma nem outra é mocinha ou vilã, boazinha ou cruel, como as pessoas do bairro costumam dizer. Ambas têm contradições, altruísmo e egoísmo, desprezo e amor, e muito uma da outra. Eu me pergunto como seria ter Lila como narradora, como Lenu nos pareceria a seus olhos. Lila parece buscar em Lenu um equilíbrio para sua desmarginação, enquanto para Lenu ela é um impulso para suas necessidades de transgredir, de ser mais do que a imagem da garota que fez tudo o que se esperava dela como jovem estudiosa.
Acredito que as pessoas, e, no contexto social, as mulheres, têm em si tanto Lila quanto Lenu, numa alternação de conflito e harmonia. O brilho inerente, a desmarginação, a ferocidade de Lila; a insegurança, a resiliência, a conciliação de Lenu; as opressões de gênero, de classe; a capacidade de se apaixonar, de odiar, de ser indiferente, de fazer bem e mal, de ser ambivalente.
São essas complexidades das protagonistas e de toda a narrativa da tetralogia que fizeram dessa obra uma das minhas preferidas da vida.
Termino esse primeiro texto com uma das cenas que acho mais bonitas no livro, quando Lenu ajuda Lila a se lavar e se vestir para o casamento com Stefano (10).
É um momento muito simbólico, até mais do que a própria cerimônia de
casamento, cheio das ambivalências que permeiam a tetralogia. Ali, ambas
são a amiga genial uma para a outra. Os sentimentos de Lenu se misturam
à Lila, a dor de saber o que vai acontecer com ela, de se afastar, e
ao mesmo tempo a inveja de não ser ela a estar experimentando aquela
coisa nova, e também a admiração que sempre sentiu, agora vendo Lila
nua, vulnerável como poucas vezes a veria, “o que vai acontecer comigo,
Lenu?”. Lila projeta sobre Lenu os sonhos que não poderá mais alcançar,
fazendo-a prometer que será sempre a melhor da classe, que nunca deixará
de estudar. Foi Lenu quem escolheu o vestido, em suas maneiras
conciliadoras e em sua ilusão de que Stefano realmente amaria sua amiga,
condescendente com aquele momento que se revelaria tão trágico. Talvez
Lenu sentisse um pouco de culpa, por trás de todos as emoções que
relata, talvez Lila já ali se arrependesse do que estava prestes a
fazer.
A noiva calça os sapatos que projetou e diz: “os sonhos da
cabeça foram parar debaixo dos pés”. Aquele sonho pré-adolescente
acabara, agora os sapatos eram um produto para que principalmente
Stefano lucrasse, alimentando um sistema que a própria Lila desprezava.
Agora aquele homem, que lhe prometera transformação com uma máscara de
gentileza, não possuiria apenas o fruto das suas ideias, mas também o
seu corpo e a sua liberdade.
Nem preciso dizer que esse primeiro
volume me cativou completamente desde o início, com a escrita direta e
bela de Elena Ferrante. Confira os próximos posts com a continuação
dessa resenha sobre a tetralogia napolitana e siga o Das palavras no Instagram.
***
(1) “Vivíamos em um mundo em que crianças e adultos
frequentemente se feriam, o sangue escorria das chagas, que depois
supuravam e às vezes se acabava morrendo.” (P. 24)
(2) “No começo do verão vi nascer em mim um sentimento difícil de ordenar em palavras. Notava que ela estava nervosa, agressiva como sempre fora, e eu ficava contente, reconhecia-a assim. Mas também sentia, por trás de suas velhas maneiras, um sofrimento que me incomodava. Ela estava sofrendo, e sua dor não me alegrava. Eu preferia quando ela era diferente de mim, quando estava muito distante de minhas ansiedades. E o mal-estar que me dava descobri-la frágil se transformava, por vias secretas, numa necessidade minha de superioridade. Sempre que eu podia, com muito cuidado, e de preferência na presença de Carmela Peluso, achava um jeito de lembrar que eu tivera uma nota mais alta que ela. Sempre que eu podia, com muito cuidado, mencionava que iria para a escola média, e ela não. Deixar de ser a segunda, superá-la, pela primeira vez me pareceu um sucesso. Ela deve ter percebido e se tornou ainda mais hostil, mas não comigo, com a família dela.” (P. 74)
(3)
“Ao contrário, em sua ausência, após uma breve hesitação, me pus em seu
lugar. Ou melhor, abri um espaço para ela em mim.” (P. 90)
(4) ““É bom”, murmurei, “falar com os outros.”
“Sim, mas só quando você fala e há alguém que responde.”
Senti no peito um sopro de alegria. Que pedido havia naquela bela frase? Estava querendo dizer que só queria falar comigo porque eu não acreditava em tudo o que lhe saía da boca, mas respondia a ela? Estava dizendo que somente eu era capaz de acompanhar as coisas que lhe passavam pela cabeça?
Sim. E o estava dizendo com um tom que eu desconhecia, brando, apesar de brusco, como sempre. (...) Tínhamos doze anos, mas caminhamos sem tempo pelas ruas fervilhantes do bairro, entre a poeira e as moscas que os velhos caminhões de passagem deixavam para trás, como duas velhinhas fazendo o balanço de suas vidas cheias de desilusão, bem apegadas uma à outra. Ninguém nos compreendia, só nós duas –
pensávamos – nos entendíamos. Nós, juntas, somente nós sabíamos quanto a capa que pesa sobre o bairro desde sempre, isto é, desde quando tínhamos memória, cederia ao menos um pouco se Peluso, o ex-marceneiro, não tivesse afundado a faca no pescoço de dom Achille, se o responsável por isso tivesse sido o habitante dos esgotos, se a filha do assassino se casasse com o filho da vítima. Havia algo de insustentável nas coisas, nas pessoas, nos prédios, nas ruas, que somente reinventando tudo, como num jogo, se tornava aceitável. Mas o essencial era saber jogar, e eu e ela, eu e ela apenas, sabíamos fazê-lo.
(...)
Por ela, naquela manhã de reaproximação, eu teria feito qualquer coisa: fugir de casa, abandonar o bairro, dormir em barracos, comer raízes, descer aos esgotos através das sarjetas, não voltar para trás, nem que fizesse frio, nem que chovesse muito. Mas o que ela pediu me pareceu uma ninharia e, naquele momento, fiquei decepcionada. Queria simplesmente que nos víssemos uma vez por dia, nos jardins, ainda que só por uma hora, antes do jantar, e que eu levasse meus livros de latim.”
(P. 100)
(5) “Enfim, os últimos dez dias de julho me deram uma sensação de bem-estar até então desconhecida. Experimentei algo que depois, ao longo de minha vida, se repetiu frequentemente: a alegria do novo. Tudo me empolgava: acordar cedo, preparar o café da manhã, tirar a mesa, passear por Barano, fazer o caminho de subida ou descida até Maronti,
ler estendida ao sol, mergulhar, voltar a ler. Não tinha saudades de
meu pai, de meus irmãos, de minha mãe, das ruas do bairro, dos jardins.
Só me faltava Lila, Lila, que no entanto não respondia às minhas cartas. Temia que lhe acontecessem coisas, boas ou ruins, sem que eu estivesse presente. Era um temor antigo, um temor que eu nunca superara: o medo de que, perdendo partes de sua vida, a minha perdesse intensidade e centralidade. E o fato de ela não me responder acentuava essa preocupação. Por mais que me esforçasse em comunicar-lhe nas cartas o privilégio dos dias em Ischia, meu rio de palavras e seu silêncio me pareciam demonstrar que minha vida era esplêndida, mas pobre de acontecimentos, tanto que me sobrava tempo para escrever-lhe todos os dias; a dela, sombria, mas plena.” (P. 207)
(6) “Mas agora eu me irritava só de olhar para ele. Seria presunçoso como o pai, apesar de detestá-lo? Achava que os outros deviam necessariamente desejá-lo, amá-lo? Era tão cheio de si a ponto de não tolerar outras virtudes que não as próprias?
(...)
Escrevia melhor do que ele, publicaria na revista em que ele publicava, era boa na escola tanto ou mais que ele, tinha um homem – e por isso nunca correria atrás dele feito uma cadelinha fiel.” (P. 302)
(7) “Sabia entrar e sair do bairro quando queria, sem se deixar contaminar. Podia fazê-lo, era capaz de fazê-lo, talvez o tivesse aprendido anos antes, na época da tormentosa mudança que quase lhe custara a vida.” (P. 330)
(8) ““Desculpe, Rino, mas você acha que eu coloquei tanto dinheiro assim na sapataria, a fundo perdido, só por amor à sua irmã? Fizemos os sapatos, eles são bonitos, agora temos de vendê-los. O problema é que precisamos achar o lugar certo.”
Aquele “só por amor à sua irmã” não lhe agradou [a Lila].”
(P. 307)
(9) ““Você quer me usar para enganá-las?”
Ela percebeu que eu estava ofendida e apertou forte minha mão:
“Não
quis lhe dizer uma coisa ruim. Queria apenas dizer que você é ótima em
atrair o amor das pessoas. A diferença entre mim e você, desde sempre, é
que de mim as pessoas têm medo, de você, não.”
“Talvez porque você seja cruel”, eu disse cada vez mais irritada.
“Pode
ser”, respondeu, e percebi que a magoara assim como ela me havia
magoado. Então, arrependida, acrescentei logo para remediar:
“Antonio até morreria por você: pediu que lhe agradecesse pelo trabalho que conseguiu para a irmã.”
“Foi Stefano quem deu o trabalho a Ada”, replicou. “Eu sou cruel.””
(P. 294)
(10) “Ficou um tempo calada, mirando a água que brilhava na bacia, e então disse:
“Qualquer coisa que aconteça, continue estudando.”
“Mais dois anos: depois pego o diploma e terminou.”
“Não, não termine nunca: eu lhe dou o dinheiro, você precisa estudar sempre.”
Dei um risinho nervoso e disse:
“Obrigada, mas a certa altura a escola termina.”
“Não para você: você é minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, homens e mulheres.”
Levantou-se, tirou a calcinha e o sutiã, disse:
“Vamos, me ajude, ou vou me atrasar.”
Jamais
a tinha visto nua, me envergonhei. Hoje posso dizer que foi a vergonha
de pousar com prazer o olhar sobre seu corpo, de ser a testemunha
participante de sua beleza de dezesseis anos poucas horas antes de que
Stefano a tocasse, a penetrasse, a deformasse, talvez, engravidando-a.
Naquele momento foi apenas uma tumultuosa sensação de inconveniente
necessário, uma situação em que não se pode virar o rosto para o outro
lado, não se pode afastar a mão sem dar a reconhecer o próprio
desconcerto, sem o declarar justo ao se retrair, sem portanto entrar em
conflito com a imperturbada inocência de quem nos está perturbando, sem
exprimir precisamente com a recusa a violenta emoção que nos abala, de
modo que você se obriga a continuar ali, a deixar o olhar sobre os
ombros de menino, sobre os seios de mamilos crispados, sobre os quadris
estreitos e as nádegas rijas, sobre o sexo escuríssimo, sobre as pernas
compridas, sobre os joelhos tenros, sobre os tornozelos arredondados,
sobre os pés elegantes; e você finge como se não fosse nada, quando na
verdade tudo está em ato, presente, ali no quarto pobre e um tanto
escuro, a mobília miserável ao redor, sobre um piso irregular e manchado
de água, e o coração se agita, e suas veias se inflamam.
Lavei-a com
gestos lentos e acurados, de início deixando-a agachada no recipiente,
depois lhe pedindo que ficasse de pé, e ainda tenho nos ouvidos o rumor
da água que escorre, e me ficou a impressão de que o cobre da bacia
tinha uma consistência semelhante à da carne de Lila, que era lisa,
sólida, calma. Tive sentimentos e pensamentos confusos: abraçá-la,
chorar com ela, beijá-la, puxar-lhe os cabelos, rir, fingir competências
sexuais e instruí-la com voz doutoral, repeli-la com palavras bem no
momento da maior intimidade. Mas no final restou apenas o pensamento
hostil de que eu a estava purificando da cabeça aos pés, de manhã cedo,
só para que Stefano a emporcalhasse durante a noite. Imaginei-a nua,
como estava agora, envolvida pelo marido, na cama da casa nova, enquanto
o trem chocalhava sob suas janelas e a carne violenta dele lhe entrava
por dentro com um golpe preciso, como uma rolha de cortiça empurrada com
a palma no gargalo de uma garrafa de vinho. E subitamente me pareceu
que o único remédio contra a dor que eu estava sentindo, que sentiria,
era achar um canto bem afastado para que Antonio fizesse em mim, naquela
mesma hora, o mesmo e idêntico ato.
Ajudei-a a se enxugar, a se
vestir, a pôr o vestido de noiva que eu – eu, pensei com um misto de
orgulho e sofrimento – tinha escolhido para ela. O tecido se tornou
vivo, sobre sua candura correu o calor de Lila, o vermelho da boca, os
olhos pretíssimos e duros. Por fim calçou os sapatos que ela mesma
desenhara. Pressionada por Rino, que, se não os
tivesse calçado, sentiria como uma espécie de traição, escolhera um par de saltos baixos,
para evitar parecer muito mais alta que Stefano. Olhou-se no espelho erguendo um pouco
o vestido.
“São feios”, disse.
“Não é verdade.”
Riu com nervosismo.
“São sim, olhe: os sonhos da cabeça foram parar debaixo dos pés.”
Virou-se com uma expressão repentina de pavor:
“O que vai acontecer comigo, Lenu?””
(P. 312 - 314)