Terra estranha - James Baldwin

Terra estranha (1962) é o terceiro livro de James Baldwin, autor e ativista estadunidense. O romance acompanha um grupo de amigos na Nova Iorque dos anos 1950, descrita com a agitação e a solidão simultâneas típicas das grandes cidades.

Tudo começa com Rufus, um jovem músico de jazz, negro, que perambula solitário pela cidade, sem dar notícias aos amigos e familiares há semanas, culpado pelo destino da ex-namorada Leona, branca. O melhor amigo de Rufus é Vivaldo, um jovem aspirante a escritor, branco, que por sua vez é amigo de seu ex-professor, Richard, que está publicando o primeiro livro, um romance comercial, e da esposa, Cass, ambos brancos. Mais à frente na narrativa, Vivaldo se relacionará com Ida, irmã de Rufus, garçonete e aspirante a cantora, negra. Por fim, temos Eric, um jovem ator em ascensão, branco, que está voltando da França para os Estados Unidos para um trabalho, reintegrando-se aos amigos. 

 

Imagem: Amazon.

 

O motivo pelo qual a cor dos personagens importa é que, consoante à época, a segregação racial ecoava suas consequências nos Estados Unidos e provocava o crescimento dos movimentos pelos direitos das pessoas negras, dos quais o autor era ativista. Assim, o racismo e as questões raciais atravessam a vida dos personagens, bem como as relações entre eles, junto às interseccionalidades entre cor, classe, gênero e sexualidade. Chega a ser angustiante quando alguns personagens brancos não conseguem ou não querem ter consciência das diferenças entre o lugar que ocupam na sociedade em relação aos amigos negros devido ao racismo estrutural.

 

"Mesmo quando ela se mostrava amistosa, algo em seu comportamento e em sua voz carregava um alerta; ela estava sempre à espera do insulto velado, da sugestão lasciva. E havia bons motivos para isso; ela não estava fantasiando nem se mostrando difícil. Era assim que o mundo tratava mulheres de má reputação, e toda menina negra já nascia com má reputação."
 

A narrativa em terceira pessoa se desenvolve se atendo a um personagem por vez, num fluxo entre presente e passado que instiga e provoca. As relações entre os integrantes do grupo, que a princípio parecem bem definidas, se mostram cada vez mais complexas e movediças. A escrita de Baldwin é bela, acessível, inteligente, conecta as histórias com coerência mas também com liberdade para as interpretações do leitor.

Em Terra estranha, as histórias não se separam das temáticas, tanto sociais quanto essencialmente humanas, como as nuances e consequências do racismo, os relacionamentos interraciais, a diversidade sexual, a violência contra a mulher, a amizade, o amor e o autoconhecimento.

Foi minha primeira leitura de James Baldwin e me cativou completamente. 

 

"Quando estava na Marinha, trouxe de uma das viagens um xale indiano para Ida. Ele havia comprado aquilo em algum lugar da Inglaterra. No dia em que entregou o xale e ela o colocou no pescoço, Rufus sentiu tremer dentro de si algo que jamais havia sido tocado. Nunca ele tinha visto a beleza dos negros. Mas, olhando para Ida, parada diante da janela da cozinha no Harlem, vendo que ela já não era apenas sua irmã mais nova e que logo se tornaria uma mulher, ela passou a estar associada às cores do xale, às cores do sol e a um esplendor incalculavelmente mais velho do que o das pedras cinzentas da ilha onde nasceram. Ele pensou que talvez esse esplendor um dia voltaria ao mundo, ao mundo que eles conheciam. Muitas eras atrás, Ida não fora uma mera descendente de escravos. Olhando o rosto escuro dela à luz do sol, tornado mais macio e sombreado pelo glorioso xale, era possível ver que ela um dia havia sido uma rainha. Então ele olhou pela janela, para o respiradouro, e pensou nas putas da Sétima Avenida. Pensou nos policiais brancos e no dinheiro que eles ganhavam com a carne negra, no dinheiro que o mundo inteiro ganhava."
 

Avaliação da leitura: 4/5.

 

Outros trechos que grifei durante a leitura:

 

"Vocês sabem, muita gente diz que alguém que põe fim à própria vida não deve ser enterrado em solo sagrado. Eu não sei nada sobre isso. Só o que eu sei é que Deus criou cada pedacinho de chão em que eu andei até hoje e que tudo o que Deus fez é sagrado. Nenhum de nós sabe o que se passa no coração de outra pessoa, ninguém sabe o que se passa em seu próprio coração, portanto ninguém tem como dizer por que ele fez o que fez. Nenhum de nós estava lá, nenhum de nós sabe. Precisamos orar para que o Senhor o receba como oramos para que o Senhor nos receba. Apenas isso. Apenas isso. E vou dizer a vocês mais uma coisa, não esqueçam: conheço muita gente que pôs fim à própria vida e que hoje anda pelas ruas, alguns pregam o evangelho, alguns estão no poder. Lembrem-se disso. Se o mundo não estivesse tão cheio de gente morta, talvez aqueles de nós que tentam viver não precisassem sofrer tanto.”"

"A grande questão com que ele se deparava nesta manhã era se ele realmente havia ou não, em algum momento, estado presente à sua própria vida. Porque, se estivera presente, então estaria presente neste momento, e seu mundo se abriria diante dele."

"Os rostos de pessoas estranhas não tinham segredos, pois a imaginação não os envolvia em nenhum mistério. Mas o rosto de quem se ama é desconhecido exatamente por estar envolto em uma parte grande de nós mesmos. É um mistério que contém, como todo mistério, a possibilidade do sofrimento."

"O problema de uma vida em segredo é que muitas vezes ela é um segredo para a pessoa que a vive, mas passa longe de ser um segredo para quem ela encontra pelo caminho. Ela encontra, pois precisa encontrar, pessoas que enxergam seu segredo antes de qualquer outra coisa e que extraem dela esses segredos; às vezes com o intuito de usá-los contra ela, às vezes com intenções mais benévolas; mas, seja qual for a intenção, o momento é horrível e as revelações que se acumulam são de uma angústia indizível. O objetivo de um sonhador, no final das contas, é meramente continuar sonhando, e não ser incomodado pelo mundo. Seus sonhos são sua proteção contra o mundo. Mas os objetivos da vida são a antítese dos objetivos do sonhador, e os dentes da vida são afiados. Como Eric poderia saber que suas fantasias, independentemente do tamanho da dificuldade que sentia para interpretá-las, estavam inscritas em cada um de seus gestos, eram traídas em cada inflexão de sua voz e viviam em seus olhos com todo o brilho, a beleza e o terror do desejo?
"

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