Kindred: Laços de Sangue - Octavia E. Butler
Dana vive com seu marido Kevin nos Estados Unidos da década de 1970.
Logo após a mudança para uma nova casa, durante a arrumação das
estantes, ela é tragada por uma viagem no tempo que a transporta para o
século XIX. De repente, ela se vê numa floresta, diante de um rio onde
um menino está se afogando. Imediatamente, ela se lança para salvá-lo,
mas é desprezada pela mãe e ameaçada pelo pai do menino, afinal, Dana é
uma mulher negra que acabou de salvar um menino branco numa época
escravocrata. Antes que possa ser prejudicada, Dana é transportada de
volta a sua casa, onde seu marido, incrédulo, diz que ela só sumiu por
alguns segundos.
Desse dia em diante, ela continua a ser
misteriosamente transportada por períodos cada vez mais longos ao século
XIX, para diferentes fases da vida desse menino, cujo pai é dono de uma
fazenda e de pessoas escravizadas. O garoto se chama Rufus, e, fazendo
outras conexões, Dana percebe que se trata de um de seus antepassados,
de forma que suas vidas estão intrincadamente ligadas, tornando-a
responsável não apenas pela própria sobrevivência, mas também de sua
árvore genealógica.
Esse é o início do enredo de Kindred (1979), que dentre suas muitas complexidades também nos leva a refletir também sobre a importância de conhecer nossas origens.
Além disso, com seu
pensamento moderno, sabendo o desenrolar do período histórico que está
vivendo, Dana sente a necessidade de acelerar os processos de libertação
das pessoas escravizadas da fazenda de Rufus. A princípio, ela parece
ter muito controle de seus planos, pois acredita que possa conversar e
educar Rufus, enquanto ainda é criança, para que questione o sistema em
que nasceu e no qual está sendo formado para ser o futuro senhor. Ela
também procura ensinar as crianças escravizadas a ler e incutir uma
possibilidade de revolução nos adultos.
Porém, gradativamente
Dana percebe que sua missão é mais complexa do que parece. Que assim
como ela não tem escolha senão ajudar Rufus até que sua bisavó Hagar
possa nascer, as pessoas negras que conhece ali são escravizadas não só
fisicamente, mas também psicologicamente, pelo constante medo e ameaça
que lhes impõem, tanto sobre seus próprios corpos - as surras, os
estupros, o trabalho exaustivo, a desnutrição -, quanto sobre os de
seus filhos e familiares - vendidos, feridos, assassinados. Que ela não é
uma salvadora vinda do futuro. Que sua própria liberdade não depende
apenas de sua força de vontade de não se conformar àquela época. Dana
percebe que a norma da época exerce sobre as pessoas uma influência
maior do que imaginava, e que ela mesma se vê em adaptação a uma
condição que ela não acreditava ser adaptável. (Nesse ponto, me lembrei
do “espírito da época” que age sobre Orlando.)
“Senti o suor de meu rosto se misturando com as lágrimas silenciosas de frustração e ira. Eu já sentia a dor nas costas aumentando pouco a pouco, e a vergonha me tomando pouco a pouco. A escravidão era um processo que matava pouco a pouco.”
A narrativa também contém flashbacks da vida de Dana, de quando começou sua carreira de escritora, quando conheceu Kevin, como eles desenvolveram um relacionamento interracial. Entre essas breves lembranças e períodos do livro em que Dana vive no séc. XX, há também elementos que nos levam a comparar as duas épocas que se apresentam, a questionar se a liberdade de Dana, das pessoas racializadas, realmente está garantida. E essa reflexão continua a ecoar até nós, leitores no séc. XXI.
“- Sempre vou embora, torço para não voltar nunca mais.
Ele assentiu.
- Mas pelo menos, ocê consegue um tempo de liberdade.
Desviei o olhar, sentindo-me estranhamente culpada por, sim, conseguir um tempo de liberdade. Não o suficiente, mas provavelmente mais do que Nigel um dia poderia experimentar.”
[spoiler daqui em diante]
Há muitas outras nuances no enredo que tornam Kindred uma leitura muito instigante e intrigante. Um exemplo é quando Kevin é transportado com Dana para o passado. Embora ele lhe ofereça certa proteção por ser branco, fingindo ser seu dono para facilitar sua vida na casa de Rufus, ele acaba sendo deixado no século XIX quando Dana retorna, sempre de forma inesperada. Quando ela é novamente levada ao passado, já se passaram anos, e ela precisa esperar que seu marido retorne. Esse período provoca tensões entre eles e com a vida moderna.
Entretanto, essa tensão também existe na fazenda, pois Dana, embora seja tratada como escrava pelos senhores, ao mesmo tempo exerce certo amedrontamento devido a suas misteriosas idas e vindas. Entre os outros negros, ela é também é muitas vezes vista com desconfiança por seu modo de falar, mais parecido com o dos brancos, e por suas roupas “de homem”, pois ela costuma vestir calças jeans e camiseta. Desse modo, ela sofre com um deslocamento de tempo e de relações, que também ocorrem hoje, devido às complexidades do processo de racialização.
Também há a mala que Dana mantém junto a si quando no séc. XX, com coisas que podem ajudá-la no séc. XIX, como remédios, anti séptico, uma faca, um livro de História, roupas. A mala é um símbolo poderoso de como os grupos considerados minoritários em nossa sociedade estão em constante alerta, prontos para lutar por sua sobrevivência, assim como Dana nunca sabia quando seria chamada para o passado e permanecia vigilante, com a mala pronta por perto.¹
Os personagens de Kindred, tanto principais quanto secundários, são tão complexos quanto o enredo, não estão lá apenas para cumprir uma função na narrativa, mas participam dela ativamente, nos criam falsas expectativas, nos despertam sentimentos conflitantes.
A escrita de Octavia E. Butler é fluida, assertiva, capaz de nos transportar com Dana para qualquer tempo e espaço. Sentimos a agonia e o alívio da personagem de acordo com suas vivências. Digo sem medo que foi o melhor livro de ficção científica que já li, e que me fez colocar mais livros da autora em minha lista de desejados.
Por tudo isso, foi uma leitura 5/5. Recomendo demais.
“Eles deram à bebê o nome de Hagar. Rufus disse que era o nome mais feio que já tinha ouvido, mas foi escolha de Alice, e assim ele deixou que fosse. Eu achei o nome mais lindo que já tinha ouvido. Eu me sentia quase livre, meio livre, se é que algo assim fosse possível, com meio caminho para casa. Eu me senti alegre, a princípio, secretamente exultante.”
¹ Essa reflexão sobre a mala de Dana surgiu nas conversas do Clube de Leituras Decoloniais. Li Kindred junto às facilitadoras e aos apoiadores do clube em março de 2022. É uma experiência muito enriquecedora poder conversar sobre a leitura, recomendo muito que conheçam o projeto e apoiem se puderem. No Instagram: @leiturasdecoloniais.
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