Orlando - Virginia Woolf

Orlando é a personalidade fictícia cuja vida é descrita neste romance em forma de biografia de Virginia Woolf. Orlando nasceu numa família próxima à nobreza da Inglaterra no século XVI e a narrativa a segue até 1928, ano de publicação do livro.

Orlando é uma pessoa romântica, ligada à natureza, que tem desde a juventude a aspiração de ser poeta, levando séculos na escrita do poema “O Carvalho”. Orlando, apesar de sua incomum e perene juventude, que permite que presencie eventos que transformam a humanidade, também vive sentimentos comuns a qualquer ser humano.

Mas a longevidade não é o único acontecimento curioso na história de Orlando. Isso porque, tendo nascido com o sexo masculino, ela passa por uma súbita transformação para o sexo feminino. Assim como sua ausência de envelhecimento, essa mudança de sexo não é vivida com espanto por Orlando, que segue sendo quem sempre foi, mudando internamente apenas tanto quanto qualquer um muda com o tempo. 

Foto do livro Orlando segurado por minha mão diante do céu nublado, um pouco inclinado para a esquerda. Descrição da capa: há uma foto da autora Virginia Woolf em preto e branco. Ela vestia uma roupa preta, colar, brincos, tinha os cabelos presos, sua boca está entreaberta num início de sorriso, e seus olhos olham quase na direção da câmera, com as pálpebras um pouco caídas. À esquerda da capa te uma faixa amarela com o nome da autora escrito em letras grandes, de cima para baixo. No canto superior direito da capa tem um retângulo azul, e no inferior esquerdo tem um amarelo e azul. O título do livro está escrito em uma faixa branca um pouco abaixo do centro.

Imagem: autora.

Ao final, há uma abertura para pensarmos que Orlando continua viva. Em algumas passagens, o biógrafo ressalta a influência do “espírito da época” sobre as ações de Orlando, como uma força que emana da sociedade que a circunda em cada tempo e que a induz, por exemplo, a se casar em determinado momento, embora não sem questioná-lo.

O biógrafo, ou narrador, também é digno de nota. Ele nos lembra constantemente de seu dever de imparcialidade, ao mesmo tempo em que faz diversas digressões e provoca o leitor, sem chegar a conclusões. Também é interessante porque, no estilo de fluxo de consciência de Virginia Woolf, ele se interessa mais pelos pensamentos de Orlando do que por narrar sua vida minuciosamente.

Até a metade do livro, tive uma leitura mais lenta, mas, a partir do momento em que Orlando muda de sexo, tudo ficou mais interessante e grifei vários trechos. Alguns são um pouco longos, mas acho que vale a pena comentar aqui.

Orlando tinha se transformado numa mulher - não há como negar. Mas, em todos os outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente o mesmo. Sua memória - no futuro devemos, por convenção, dizer “dela” em vez “dele”, e “ela” em vez de “ele” - , sua memória, então, retornava a todos os acontecimentos de sua vida passada, sem encontrar qualquer obstáculo. Uma ligeira nebulosidade pode ter ocorrido, como se algumas gotas escuras tivessem caído no claro poço da memória; certas coisas tinham ficado um pouco apagadas; mas isso era tudo. A mudança parecia ter sido produzida completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que (1) Orlando sempre tinha sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante.
Pág. 84
 
Achei muito inteligente a forma como as questões de gênero e sexo são apresentadas a partir desse momento, com diversas provocações às noções tradicionais. Isso também vale para outras questões levantadas no livro, que surgem da experiência de Orlando, que não é a maior crítica social, desenrolando suas reflexões apenas a partir de si mesma, do que a autora se utiliza para fazer as suas próprias críticas de forma sutil. Nesse caso, Orlando demonstra o quanto o sexo por si mesmo não constrói a personalidade, os gostos ou outras características do ser.

Após a transformação, Orlando passa um tempo vivendo entre ciganos, experiência que lhe proporciona um choque de culturas e que lhe rende reflexões sobre a estrutura da sociedade, sobre a superficialidade das coisas que eram valorizadas no meio de onde veio.

Lentamente, ela começou a sentir que havia algumas diferenças entre ela e os ciganos que a faziam hesitar às vezes em se casar e se fixar entre eles para sempre. A princípio tentou explicar isso dizendo que provinha de uma raça antiga e civilizada, enquanto os ciganos eram um povo ignorante, não muito melhor do que os selvagens. Uma noite, quando a interrogavam sobre a Inglaterra, não pode deixar de mostrar orgulho em descrever a casa onde nascera, que tinha 365 quartos, e que pertencia à sua família há quatrocentos ou quinhentos anos. Seus ancestrais eram condes, ou mesmo duques, acrescentou. Nisso, observou que os ciganos novamente estavam incomodados, mas não zangados como quando ela elogiara a beleza da natureza. Agora estavam corteses porém embaraçados, como as pessoas de fina educação, quando um estrangeiro vem a revelar seu nascimento humilde ou sua pobreza. Rustum seguiu-a para fora da tenda sozinho e disse-lhe que ela não precisa se preocupar que seu pai fosse um duque e que possuísse todos os quartos e móveis que havia descrito. Nenhum deles pensaria mal dela por isso. Então, foi tomada por uma vergonha nunca antes sentida. É claro que Rustam e os outros ciganos pensavam que uma ascendência de quatrocentos ou quinhentos anos era a mais pobre possível. Suas próprias famílias remontavam a pelo menos dois ou três mil anos. Para os ciganos, cujos ancestrais tinham construído as Pirâmides séculos antes do nascimento de Cristo, a genealogia dos Howards e dos Plantagenetas não era nem melhor nem pior do que a dos Smiths ou dos Jones todos eram insignificantes. Além do mais, quando um pastor tinha uma linhagem de tamanha antiguidade, nada havia de especialmente memorável ou desejável num berço antigo; os vagabundos e os mendigos também a possuem. E então, embora fosse extremamente cortês para falar abertamente, era claro que o cigano pensava que não há ambição mais vulgar do que possuir quartos às centenas (eles estavam no topo da colina quando conversavam; era noite; e as montanhas erguiam-se ao redor) quando a terra inteira é nossa. Do ponto de vista de um cigano, um duque, Orlando entendeu, não era mais do que um aproveitador ou ladrão que arrebatara terra e dinheiro do povo, que considerava essas coisas de pouco valor, e não podia pensar em coisa melhor do que construir 365 quartos, quando um era suficiente e nenhum ainda melhor. Ela não podia negar que seus antepassados tinham acumulado campo após campo; casa após casa; honraria após honraria; contudo, nenhum deles tinha sido santo ou herói ou grande benfeitor da humanidade. Nem podia deixar de reconhecer (Rustum era muito cavalheiro para insistir, mas ela compreendeu) que qualquer homem que fizesse agora o que seus antepassados haviam feito trezentos ou quatrocentos anos antes seria denunciado - ruidosamente, por sua própria família - como um vulgar arrivista, um aventureiro, um nouveau riche.”
Pág. 89
 
Devido às duas diferenças em relação aos ciganos e a sua paixão pela escrita, Orlando retorna à cidade. Na viagem de volta, ela começa a descobrir as diferenças que lhe são impostas com o gênero mulher, a misoginia que ela mesma carregava quando transitava no gênero homem, e a nulidade das convenções diante da verdade.

Lembrava agora como, quando rapaz, insistira em que as mulheres deviam ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. ‘Agora tenho que pagar pessoalmente por esses desejos", refletiu, ‘pois as mulheres não são (julgando pela minha própria curta experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas por natureza. Elas só podem conseguir esses encantos - sem os quais não desfrutam de nenhum dos prazeres da vida - por meio da mais tediosa disciplina. Há o penteado", pensou, ‘ que sozinho toma uma hora da minha manhã; o olhar no espelho, mais uma hora; colocar e amarrar o espartilho; banhar-me e empoar-me; mudar de seda para renda e de renda para brocado; ser casta o tempo…’ Aqui, sacudiu o pé impacientemente e mostrou uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro que estava no mastro, e que olhou por acaso para baixo aquele momento, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o equilíbrio e só se salvou por um triz. ‘Se a visão dos meus tornozelos signifca a morte para um homem honesto que sem dúvida tem mulher e família para sustentar, devo, por humanidade, mantê-los cobertos’, pensou Orlando. No entanto, suas pernas estavam entre seus maiores encantos, e ela começou a pensar a que estranha situação chegamos quando toda a beleza de uma mulher tem que ser mantida coberta para que um marinheiro não caia do mastro principal. ‘Que se danem!’, disse ela, compreendendo pela primeira vez o que em outras circunstâncias lhe teriam ensinado quando criança, ou seja, as sagradas responsabilidades de ser mulher.
‘E esta é a última praga que poderei rogar’, pensou, ‘antes de pôr os pés no solo inglês. Não serei capaz de quebrar a cabeça de um homem, nem dizer-lhe que mente até os dentes, nem desembainhar minha es pada e transpassá-lo, nem sentar entre meus pares, nem usar uma coroa, nem andar em procissão, nem condenar um homem à morte, nem comandar um exército, nem exibir-me num corcel pelo Whitehall, nem usar 72 diferentes medalhas no peito. Tudo o que posso fazer quando pisar no solo inglês é servir chá e perguntar aos meus senhores como eles o preferem. Com açúcar? Com creme?’ E, pronunciando as palavras, ficou horrorizada de perceber como era baixa a opinião que estava formando a respeito do outro sexo, o masculino, ao qual antes tivera orgulho de pertencer. (...)
E aqui parecia haver alguma ambiguidade em seus termos, pois estava censurando ambos os sexos igualmente, como se não pertencesse a nenhum; e na verdade, até aquele momento, parecia vacilar; era homem; era mulher; conhecia os segredos e partilhava as fraquezas de cada um. (...)
“‘Amor’, disse Orlando. Instantaneamente - tal é a sua impetuosidade - o amor tomou uma forma humana - tal é o seu orgulho. Pois, enquanto os outros pensamentos se contentam em permanecer abstratos, nada satisfará a este se não se revestir de carne e sangue, mantilhas e saias, calças e jaquetas. E, como todos os amores de Orlando tinham sido mulheres, agora, devido à censurável morosidade da constituição humana em adaptar-se à convenção, embora ela própria fosse uma mulher, era ainda uma mulher que ela amava; e, se a consciência de ser do mesmo sexo tinha algum efeito sobre isso, era o de apressar e aprofundar aqueles sentimentos que tivera como homem. Pois agora mil insinuações e mistérios que antes pareciam obscuros se aclaravam para ela. Agora, a obscuridade - que divide os sexos e permite a sobrevivência de inúmeras impurezas à sua sombra - foi removida, e, se há alguma relação no que o poeta diz sobre verdade e beleza, esta afeição ganhou em beleza o que perdeu em falsidade. Finalmente, gritou, ela conhecia Sasha como era, e, no ardor desta descoberta e no encalço de todos os tesouros que lhe eram agora revelados, estava tão arrebatada e encantada como se uma bala de canhão tivesse explodido nos seus ouvidos (...).

Pág. 95, 96, 97
 
Essas descobertas seguem ocorrendo até o final do livro. Em seu encanto pelos poetas, que é o mesmo desde sua época de menino, Orlando busca por estar perto dos grandes poetas de sua época, mas percebe o quanto são todos pessoas comuns por trás das obras. O livro também aborda a hipervalorização das obras do passado, o que se torna irônico no ponto de vista de Orlando, que presencia o mesmo discurso em diferentes épocas.

Outra perspectiva interessante, em relação ao tempo de vida de Orlando e que transparece em sua história, são as inovações tecnológicas que surgem, principalmente no século XX, sobre o qual ela pensa:

A verdadeira textura da vida agora é mágica, pensou enquanto subia. No século XVIII sabia-se como cada coisa era feita; mas aqui vou eu, subindo pelo ar; ouço vozes da América; vejo homens voando - mas não posso nem imaginar como isso é feito.
Pág. 178
 
Orlando foi uma leitura intrigante, apesar de ter achado cansativa em alguns momentos. Eu me diverti com as provocações do biógrafo, porque muitas vezes parecia que ele “cutucava e saía correndo”.

Talvez Orlando ainda esteja viva e aprofundando suas análises da sociedade.

Por isso, ao mesmo tempo, a sociedade é tudo e a sociedade é nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo e a sociedade em si não existe. Com tal monstro só os poetas e os novelistas podem lidar; com esse tudo e esse nada suas obras atingem um volume considerável; e para eles o deixamos, com a melhor das boas vontades.
Pág. 116

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Li Orlando na edição de 2018 da editora Nova Fronteira, com tradução e apresentação de Laura Alves.