Crônica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami
Crônica do Pássaro de Corda, de Haruki Murakami, foi publicado em 1994 e 1995. Passei boa parte do mês de agosto imersa nessa leitura, e ao terminar até senti falta das personagens. Foi o primeiro livro do autor que li e fiquei fascinada por sua escrita. Já quero ler toda a sua obra. Essa resenha nasce da vontade de compartilhar essa história com outros leitores ou possíveis leitores de Murakami e de refletir um pouco mais sobre os diversos elementos que se entrelaçam na narrativa.
[Essa resenha contém spoilers]
Toru Okada tem 30 anos, está desempregado e ainda não sabe o que fazer da vida, depois de anos em um emprego com que não se identificava. Sua esposa Kumiko está preocupada com o gato de estimação, que sumiu. Assim, além de cozinhar e manter a casa em ordem, Okada passa a procurar pelo animal durante o dia, enquanto Kumiko está no trabalho. O gato fora adotado quando eram recém-casados, e seu sumiço é como o presságio de que algo vai mal entre eles. Presságio que logo se revela no desaparecimento de Kumiko, que sai de casa levando apenas uma roupa buscada na lavanderia.
Foto: autora.
Outra espécie de presságio interessante é o cessar do canto do chamado “pássaro de corda”, que Toru costumava ouvir todos os dias, mesmo sem nunca ter visto o pássaro propriamente dito. Ele o chamava de pássaro de corda pois seu som era semelhante aos aparelhos de dar corda, e imaginava que aquele canto como que dava corda no mundo todos os dias, até o momento em que sua vida começa a tomar um rumo diferente.
O gato se chamava Noboru Wataya, como o irmão mais velho de Kumiko, um político em ascendência no Japão. Okada odeia o homem, alguém que considera esconder algo estranho sob a máscara do discurso ao mesmo tempo vago e convincente para as massas.
Estranhos também são os encontros que Okada passa a ter, pouco antes e principalmente depois do desaparecimento de Kumiko. Telefonemas de uma mulher misteriosa que diz conhecê-lo embora ele não reconheça sua voz, e de Malta Kanô, uma espécie de vidente contatada por Kumiko para ajudar a encontrar o gato. Não se sabe o verdadeiro nome da mulher, nem o de sua irmã e ajudante Creta Kanô, que aparece na casa de Okada para coletar água, um dos elementos simbólicos da narrativa. Há também May Kasahara, uma adolescente que vive na casa em frente à casa abandonada na vizinhança de Okada. No início de sua busca pelo gato, Okada observa a casa, conhecida por um histórico de fins trágicos de todos os antigos moradores, e que possui um poço seco. Nessa ocasião, ele conhece May, descobre que ela é considerada uma jovem problemática e que não vai à escola, passando os dias fumando, tomando sol, pensando na morte e trabalhando ocasionalmente para um fabricante de perucas. Eles acabam se tornando amigos, e como ela considera o nome Toru Okada difícil de lembrar, ele se apelida de Pássaro de Corda.
Após o sumiço de Kumiko, Noboru Wataya e Malta Kanô marcam um encontro com Okada. Wataya tenta rispidamente convencê-lo a assinar o divórcio e, embora saiba onde a irmã está, se recusa a permitir que Okada tenha contato com ela, alegando que ela está com outro homem e não quer mais vê-lo. Porém, Okada não acredita completamente na história e se nega a assinar o divórcio sem antes falar pessoalmente com Kumiko.
Dá-se início a um longo período que é simultaneamente de espera e de busca. Okada passa a ter estranhos sonhos que se misturam à realidade, chegando a um ponto em que sonho e realidade se influenciam mutuamente. Assim, se acordado Okada inicialmente espera pela volta de Kumiko, nos sonhos e lembranças ele busca ativamente por pistas de seu paradeiro e do que ocasionou sua partida.
Outro importante personagem é o tenente Mamiya, um senhor solitário que é incumbido de entregar um presente deixado por um colega seu, o senhor Honda, um vidente conhecido da família de Kumiko que ela e Okada costumavam visitar no primeiro ano de casados. O senhor Honda costumava dizer a Okada que tivesse cuidado com a água, e que:
“Você não deve obstruir o fluxo: deve subir quando tiver que subir e descer quando tiver que descer. Quando o fluxo estiver para cima, basta encontrar a torre mais alta e subir até o topo. Quando o fluxo estiver para baixo, basta encontrar o poço mais fundo e descer até as profundezas. Quando não existir fluxo, basta ficar parado. Se você obstruir o fluxo, tudo seca. Se tudo secar, o mundo vira um lugar de trevas. ‘Eu sou ele, ele sou eu, noite de primavera.’ Quando abandonamos o eu, o eu se manifesta.”
Crônica do Pássaro de Corda
O presente que o senhor Honda deixa a Okada ao morrer é uma caixa vazia, porém, talvez sua verdadeira intenção fosse proporcionar o encontro com Mamiya, que acaba contando a Okada toda a sua história na guerra, incluindo uma ocasião em que sua única chance de sobreviver foi se jogar num poço seco, no qual passou alguns dias sem roupas, comida ou água, e onde teve uma experiência quase que transcendente ao ficar sob a luz do sol que incidia no poço apenas alguns instantes por dia.
Inspirado por essa história, Okada resolve descer ao poço da casa abandonada para pensar e tentar encontrar uma solução para o que aconteceu com Kumiko e para reencontrá-la. Depois do tempo passado ali, ele sai com um hematoma azulado no rosto, exatamente no lugar onde foi ferido em um sonho.
Inicialmente, os sonhos envolviam Creta Kanô, uma das irmãs misteriosas. Em certa ocasião ela também conta toda a sua história a Toru Okada, inclusive como foi maculada por Noboru Wataya. Mais tarde descobrimos que Kumiko também foi maculada por ele dessa forma. Essa mácula é uma espécie de destruição não física, o aflorar da pior parte de si, e as personagens parecem se perder de si mesmas, ao que Toru Okada se opõe, num lugar de ajudá-las a se encontrarem. Tanto Creta quanto Malta desaparecem da vida de Okada a partir de certo momento, não sem deixar uma advertência de que ele permanecer onde está pode ter consequências graves.
Por estar desempregado, e como seus recursos vinham principalmente do trabalho de Kumiko, chega uma hora em que Okada precisa de dinheiro. Também porque ele pretende comprar a casa abandonada. É quando ele conhece outra mulher misteriosa, que lhe oferece um estranho emprego de alguma forma relacionado a seu hematoma. Ela e seu prestativo filho trabalham juntos há anos nesse emprego, utilizando uma empresa de moda como fachada. Eles também não revelam seus verdadeiros nomes em momento algum, e Okada os chama de Noz Moscada e Canela.
O trabalho começa a ser feito dentro da casa abandonada, comprada por eles. Em suas conversas, Noz Moscada também conta sua história a Okada. Canela não fala, não por alguma condição física, mas como um dos muitos fatos inexplicáveis da narrativa. A essa altura, um funcionário de Noboru Wataya começa a aparecer na casa de Okada para tentar convencê-lo a sair da casa abandonada, pois devido ao parentesco, as suspeitas da mídia em torno da casa podem prejudicar sua imagem política. Em troca de pensar na possibilidade de ceder, Okada exige falar com Kumiko. A conversa então é marcada de forma virtual, e Okada se conecta na hora marcada por meio de um computador presente na casa abandonada. O computador tem diversas senhas, sendo instrumento do trabalho minucioso de Canela, mas Okada consegue se conectar e se comunicar com Kumiko por escrito.
Depois da conversa, Okada tem acesso a um capítulo do que aparentemente é uma narrativa arquivada no computador, com o nome de Crônica do Pássaro de Corda. É parte de uma história do pai de Noz Moscada, em que aparecem diversos elementos do mundo de Okada, como o hematoma e o pássaro de corda. Ele mesmo reflete sobre isso, se aquilo teria sido escrito por Canela após o conhecer ou se de alguma forma aquilo poderia ser real.
Ao longo da narrativa, os símbolos se interconectam de forma cada vez mais intrigante e complexa, assim como os personagens e seus mistérios. O que inicialmente era realidade e sonho parece se transformar em uma realidade surrealista.
Desde o início, me senti imersa na história, impelida pelas questões que surgem na vida de Okada/Pássaro de Corda, e também pelo ar de familiaridade que há na construção do cotidiano, os atos de cozinhar, limpar, fazer compras, ler, dormir, que coexistem com a estranheza dos acontecimentos não cotidianos e com relatos brutais de guerra. A escrita de Murakami é simples e confortável, abrindo caminho para a história nos alcançar. Os personagens são muito bem desenvolvidos, cada um tem sua história, suas próprias crônicas.
“A percepção de Murakami de ser como um tipo de encanamento - uma condução entre seu subconsciente e o de seus leitores - é tão pronunciada que ele até pausa, depois de se referir a si mesmo como um ‘contador de histórias natural’, para corrigir: ‘Não, eu não sou um contador de histórias. Sou um observador de histórias.’ Sua relação com essas histórias é como o de um sonhador com um sonho, o que deve explicar por que ele alega quase nunca sonhar durante a noite”.
The Guardian
Os mistérios do livro não se resolvem ou explicam facilmente, na verdade, muitos não se resolvem, cabem à nossa imaginação e interpretação. Acredito que numa releitura eu pudesse apreender outros significados a partir de uma atenção maior a cada símbolo. Pessoalmente, creio que o pássaro de corda aludia ao controle de Toru Okada sobre a vida, ou, como li em outras análises, ao livre-arbítrio. Quando ele ouvia aquele canto, ele se deixava levar, sem rumo, sem perspectiva de futuro, assim como quando outras personagens o ouvem são atingidos por acontecimentos externos os quais não controlam. Quando o canto cessa é que ele se apropria do apelido Pássaro de Corda, tomando para si o próprio destino diante da necessidade de recuperar Kumiko.
Pelos trechos relacionados ao hematoma, acredito que este continha uma espécie de cura para algum tipo de tormenta dentro das pessoas, ao mesmo tempo em que Okada busca por uma cura pessoal que de alguma forma se relaciona à água. Talvez ele precisasse se doar totalmente a outras pessoas e chegar ao fundo do poço para ter acesso à realidade em que estava a verdadeira raiz do problema, o plano em que Creta e Kumiko foram maculadas, e em que Noboru Wataya atuava. Havia algo obstruindo o fluxo de água, que talvez também represente a cura, ligado a Wataya.
Quando May Kasahara chora, depois de ouvir o chamado de Okada que estava em perigo dentro do poço, suas lágrimas são absorvidas sob a luz do luar, e o poço jorra água. De certa forma isso se opõe à experiência do tenente Mamiya, que foi atingido pela luz do sol, num poço seco, a qual selou sua vida prolongada e solitária. Talvez esse momento também represente a ajuda de May a Okada, ouvindo a seu chamado, ou até mesmo à sua abertura para se deixar curar. É também aí que o hematoma some e que Wataya é “derrotado” em ambas as realidades.
A narrativa se desenvolve tanto através da primeira pessoa de Toru Okada e de outros personagens quando relatam suas histórias oralmente ou por cartas, quanto com trechos em terceira pessoa sobre a história de Noz Moscada e Canela que aparentemente faziam parte da Crônica do Pássaro de Corda arquivada no computador. Aparecem também trechos de notícias sobre a casa abandonada quando é comprada pela empresa de fachada e começa a ser frequentada por Okada.
Essa foi uma leitura bem única no meu histórico, e estou muito curiosa para ler mais tanto livros quanto entrevistas e análises de seu processo criativo.
“Eu gosto muito de Gabriel García Márquez, mas não acho que ele pensava sobre o que escrevia como realismo mágico. Era apenas seu realismo. Meu estilo é como meus óculos: através dessas lentes, o mundo faz sentido para mim.”
Haruki Murakami para o The Guardian.
Você já leu Crônica do Pássaro de Corda ou outro livro de
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Trechos de entrevista com o autor para o The Guardian: https://www.theguardian.com/books/2018/oct/11/haruki-murakami-interview-killing-commendatore.