Os prêmios - Julio Cortázar
Depois de O jogo da amarelinha, minha primeira leitura de Cortázar e um dos melhores livros que li ano passado, não pude deixar de levar para casa Os prêmios, de 1960, quando passei por ele em um sebo.
Os prêmios em questão são resultado de uma rifa cujos sorteados ganham uma viagem de navio com tudo pago, incluindo acompanhantes. Porém, ninguém sabe quem são os organizadores, qual é o navio ou roteiro da viagem. A história se inicia no café London, em Buenos Aires, onde todos deveriam se encontrar para serem conduzidos ao navio. À medida em que o café vai enchendo, os grupos de sorteados começam a especular quem serão os companheiros de viagem, e o narrador passa de mesa em mesa nos apresentando os personagens que comporão o navio, através de seus diálogos e dos olhos alheios.
O grupo é diverso, composto por diferentes classes sociais, visões políticas, profissões e idades. A principal diferença, entretanto, é o nível de desconfiança em relação à viagem, tensão que guia toda a narrativa.
[Esta resenha contém spoilers.]
O primeiro ato suspeito para o leitor acontece
ainda no café, quando os representantes da viagem obrigam os demais
clientes a se retirarem e fecham as portas para se comunicarem com o
grupo. Dali, eles são conduzidos de ônibus até o embarque, quando
as relações começam se estabelecer e consolidar.
O livro é
dividido em três partes correspondentes aos três dias de duração
da viagem. Ainda no primeiro dia um novo mistério aguça as tensões
a bordo, pois a popa do navio fica inacessível para os viajantes,
assim como a possibilidade de comunicação com o continente, e a
tripulação é vaga quanto aos motivos. Depois de muita insistência,
dizem que é uma medida contra um surto de tifo que pode ter iniciado
na popa, sempre com atitudes evasivas.
Parte do grupo aceita
passivamente as justificativas, preocupada apenas em aproveitar as
férias gratuitas. Dentre estes se encontram o rico senhor Don Galo,
o Dr. Restelli, um professor secundarista, famílias simples e apenas
um casal jovem composto pela ingênua Nora e seu noivo Lúcio,
supostamente socialista, que a engana e viola.
Por outro
lado, outra parte continua desconfiada e tenta tomar atitudes para
exercer seu direito de saber aonde vão e quais são os verdadeiros
motivos do acesso proibido à popa. Estes são caracterizados por
Medrano, um homem de meia idade que embarcou para romper com a última
amante, López, jovem professor colega de Restelli, Paula, uma jovem
de espírito livre, Raul, seu irreverente amigo arquiteto, Cláudia,
uma mulher divorciada e insatisfeita com o papel tradicional de mãe,
seu filho Jorge, um menino inteligente e curioso, e Pérsio, homem
místico e amigo de Cláudia.
Há personagens que transitam
entre os grupos, como o adolescente Felipe, que levou a família por
ser menor de idade e que deseja fazer amizade com seu professor López
e seu grupo de amigos, mas se vê muitas vezes excluído. Outro
exemplo é Atílio, que trouxe a mãe, a noiva e a sogra, e que
embora queira aproveitar a viagem também oferece apoio ao outro
grupo.
Nessa divisão há algumas
metáforas de sociedade, os mais conservadores se apegam a
superficialidades e fazem de tudo para manter o próprio bem-estar,
lançando olhares julgadores para os demais, que por sua vez também
menosprezam a simplicidade de outros personagens com certa arrogância
intelectual, aproveitando o momento sem se deixarem alienar.
Apesar da viagem e de seus mistérios,
que me deixaram em constante expectativa de saber o que ia acontecer,
o protagonismo da obra está nas relações entre os personagens, que
embora tenham apenas três dias para se desenrolar já se revelam
complexas e densas. O autor transita entre cada uma como se andasse
pelo navio, ouvindo as conversas e observando o movimento, o que fez
com que eu me sentisse com eles a bordo do Malcolm.
Exemplo dessas complexidades são Raul e Paula, que embora se passem por um casal para que pudessem ser acompanhantes, são na verdade grandes amigos. López logo se apaixona por Paula, que o corresponde, demonstrando-o aos poucos. Raul é julgado pelas senhoras mais velhas como um jovem exemplar, enquanto Paula, sua suposta esposa, é vista como uma vagabunda em sua liberdade. Uma das senhoras é a sra. Trejo, que teme que Paula capture seu filho, o adolescente Felipe, ao mesmo tempo em que agradece as gentilezas de Raul para com ele, sem desconfiar de sua atração pelo garoto. Felipe tinha altas expectativas de encontrar uma garota de sua idade com quem se relacionar e sobre quem se gabar para os colegas, e, em sua insegurança e inexperiência, tenta flertar com Paula e acompanhar o grupo de homens que explora uma passagem para a popa, dentre os quais se encontra Raul, por quem se sente mais despeitado e ao mesmo tempo mais atraído, atração que considera apenas amigável, mas que ao leitor logo se revela como sexualmente reprimida.
Em paralelo, Medrano, cuja viagem é
principalmente interna no processo de superar a amante e talvez até
mesmo a vida sem compromissos que levava, logo se aproxima de Jorge e
de sua mãe, Cláudia, e os dois desenvolvem uma cumplicidade mútua
através de longas conversas. Pérsio, amigo de Cláudia, é uma
personagem que não tem conflitos com ninguém, seu principal papel é
a observação de tudo o que acontece, descrição abstrata que lemos
em seus monólogos intercalados com a narrativa.
Tanto nos
núcleos menores quanto no coletivo, as tensões aumentam até o
clímax desencadeado por uma febre de Jorge, que sela a decisão de
Medrano, López, Raul e Atílio de se abrir caminho à força para a
popa a custo de manter o grupo contrário preso em uma sala, e de
retribuição violenta dos tripulantes do navio, culminando na morte
de Medrano. Aqui me senti como Cláudia, que sente a dor dessa morte
apesar da breve convivência.
Mesmo após a tragédia não há consenso entre os viajantes, pois o grupo que foi contrariado aceita convenientemente a não responsabilização da tripulação pela morte de Medrano e consequente interrupção das férias, enquanto aquele do qual a vítima fizera parte se recusa.
Ao final da breve viagem oceânica, os personagens são encaminhados de volta para casa, cada um, porém, tendo desbravado um novo horizonte dentro de si. Ou não.
Também o leitor é responsável por tirar suas próprias conclusões sobre os acontecimentos e mistérios do navio, assim como sobre as atitudes dos personagens. Apesar de a leitura ter sido um pouco lenta para mim no início, depois do embarque tudo ficou cada vez mais intrigante, e eu particularmente gosto muito quando o autor deixa algumas conclusões por conta do leitor.
Sigo na viagem de me embrenhar nos labirintos de Cortázar.