Para onde vão seus pés

    Ao se sentar afobadamente no primeiro assento vazio avistado, perguntou-se como poderia ter chegado. Enquanto as rodas do ônibus começavam a trepidar sobre os paralelepípedos, a razão tentava refazer seus movimentos desde aquela manhã. Porém, desconfiava de que a razão ainda não acordara. Sequer sabia que horas eram, pois há dias não dormia, embora sonhasse muito. O sono diluía o tempo. Através da janela, tinha a impressão de assistir ao mundo como a um filme mudo, a cidade parecendo vestir-se preguiçosamente de um tecido de luz dourada. Talvez ainda fosse manhã. Na próxima parada, alguém se sentou a seu lado, um garoto de olhar maduro. Gostaria de dizer bom diaboa tarde, boa noite? -, passou dois minutos formulando a frase, seus dedos tremendo como se  estivesse prestes a cometer um ato notável, mas sua voz a traiu e desceu pelo esôfago antes de chegar à boca. Voltou seu olhar para fora evitando o rosto do garoto, como se ele fosse um espelho da sua timidez. Os sons das peças que rangiam e das vozes que conversavam fizeram com que a neblina exterior parecesse entrar pela janela para tampar os seus olhos.

    Sentiu a dor antes de identificar o motivo que a causou. Houve uma súbita parada antecedida de um solavanco que lançara sua cabeça ao encosto do banco da frente. “Todo mundo, descer” foram as palavras que captou nos fugazes instantes que se seguiram. As portas se abriram e sentiu frio. Foi a última a descer e a multidão na frente a impedia de identificar o motivo do contratempo. Não estava disposta a esperar, provavelmente tinha um compromisso, então começou a caminhar. A dor e o frio haviam-na despertado, agora a razão comandava os seus pés. Comandava? Então por que não sabia aonde ia? Ignorou as dúvidas e seguiu em frente, como vinha sendo há muito tempo. Seus pés já haviam se acostumado ao piloto automático, confiava neles, admitindo que a razão perdera a memória. Sentia uma curiosidade quase infantil quanto ao destino. Estava à beira da estrada, bovinos de olhos meigos pastavam nos gramados verdes que se estendiam à sua direita. Isso bem que podia ser um sonho, mas seu corpo tremia de forma realista demais, tanto quanto tremia ao tentar proferir um cumprimento ao estranho no ônibus. Seu coração também sentia frio.

    Era inverno, havia silêncio. Até mesmo os pesados veículos de carga que passavam a um metro de distância pareciam flutuar acima do asfalto. Eles deslocavam o ar como se a quisessem  espalhar como a uma folha seca. Estava tudo muito claro agora, olhou para baixo e não viu sua sombra. Uma menina dançava na beira da estrada, mas seu coração viu sua própria infância, cujo destino certo era o lar, que brincava a despeito da estrada. A pequena figura ficou para trás, continuou seguindo seus pés. Como podia não saber para onde iam? A ideia de estar indo embora doía tanto quanto a ideia de voltar para o início, todas as distâncias muito longas, na estrada e na vida adulta que buscava uma dor um pouco mais leve.

    Os campos abertos pareciam agora um mar imenso e escuro, a não ser pelo pisca-pisca dos vaga-lumes. A estrada se transformou em uma rua de paralelepípedos alternada de sombra e luz amarelada. Andava há tanto tempo que suas pernas pareciam possuir, de fato, vontade própria, e se  pisasse no ar elas subiriam no mesmo ritmo até os telhados. Entre dezenas de portas trancadas, farmácias fosforeciam solitárias. Seus pés finalmente pararam em um ponto de ônibus de cores desbotadas. Embora estivesse cansada como a criança que dançou o dia inteiro, sentia a razão voltar de um sono profundo e restaurador. Devia decidir: ir ou voltar. Esperou até que o dia amanhecesse e subiu no ônibus que ela escolhera. Sentou-se ao lado de um desconhecido, perguntou as horas. “Bom dia”, disse. Ainda sentia frio, porém suas mãos não tremiam mais.

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Escrevi esse texto em setembro de 2018, com 19 anos, e ele tem muito do que eu estava sentindo na época. Junto com o texto Ao mar, este foi publicado no volume 25 da coletânea Poeta de Gaveta organizada pela Seção de Atividades Culturais da Prefeitura do campus da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto/SP.