As histórias que não li: "o perigo de uma única história" na Literatura
Ao chegar à última palavra de Maya Angelou em “Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola”, chego a um novo marco em meu histórico de leituras,
marco simultaneamente numérico e (principalmente) literário. Nesse
texto, trago algumas reflexões e pesquisas que a combinação
literatura-números tem me proporcionado em relação aos autores que tenho
lido em minha trajetória como leitora, e como “Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola” as ilustra.
Capa: criada no Canva pela autora. Obra de fundo: "Operários", de Tarsila do Amaral.
Essa história começa com uma menina, a menina que eu era aos dez/onze anos de idade, anotando os livros que lia num caderninho vermelho, talvez numa tentativa de dizer, a cada personagem, “nunca esquecerei de você”, talvez um vislumbre de minha atual tendência a organização em listas. Como a matemática também é linguagem, os números logo fizeram par com os livros, um ao lado de cada título, principalmente quando, do caderninho vermelho preenchido a lápis, os registros passaram à estante virtual do Skoob.
Acelerando um pouco a história para o ano passado, para a jovem estudante de engenharia que há em mim, curiosa em analisar suas leituras em gráficos, essa organização foi um pouquinho mais além, para uma planilha com informações sobre as obras e seus autores. Missão nostálgica de relembrar minha história misturada às páginas amareladas na estante, ou a livros que foram para outras mãos, que voltaram para bibliotecas, que eram trocas entre amigos, que foram emprestados para nunca mais voltar (espero que estejam cuidando bem desses).
Concluída a catalogação, sujeita às incertezas de algumas informações de leituras feitas há muito tempo, cheguei à etapa de analisar algumas estatísticas cujos resultados têm gerado novas reflexões e decisões como leitora. Compartilho aqui três delas, relativas aos autores que fizeram parte da minha vida até aqui.
Quanto ao gênero, 34% dos autores de minha lista são mulheres, e 66%, homens.
Acelerando um pouco a história para o ano passado, para a jovem estudante de engenharia que há em mim, curiosa em analisar suas leituras em gráficos, essa organização foi um pouquinho mais além, para uma planilha com informações sobre as obras e seus autores. Missão nostálgica de relembrar minha história misturada às páginas amareladas na estante, ou a livros que foram para outras mãos, que voltaram para bibliotecas, que eram trocas entre amigos, que foram emprestados para nunca mais voltar (espero que estejam cuidando bem desses).
Concluída a catalogação, sujeita às incertezas de algumas informações de leituras feitas há muito tempo, cheguei à etapa de analisar algumas estatísticas cujos resultados têm gerado novas reflexões e decisões como leitora. Compartilho aqui três delas, relativas aos autores que fizeram parte da minha vida até aqui.
Quanto ao gênero, 34% dos autores de minha lista são mulheres, e 66%, homens.
Gráfico: Autora.
Em relação à nacionalidade, a maior parte (39%) dos autores são sul-americanos, majoritariamente brasileiros. Os demais são em grande parte europeus e norte-americanos, há poucos de outros continentes.
Porém, o dado que mais me chocou foi a porcentagem de 90% de autores brancos.
Essas informações de meu histórico de leitura me lembraram do “perigo de uma única história”, sobre o qual fala Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana contemporânea, nessa palestra (1) no TED. Sobre sua experiência de leitura na infância, ela diz:
Como assim?, podem se perguntar. O que números têm a ver com literatura?, como as características dos autores e personagens influenciam a história?, o que isso tudo diz sobre a qualidade de um livro? Talvez pareça estranho falar de literatura a partir de estatísticas, principalmente quando daí surgem problematizações sociais.
Sobre essas questões, Regina Dalcastagnè, no artigo “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea” (2), aponta para a importância da utilização de estatísticas nos estudos literários, pois ajudam na identificação de dados concretos para uma discussão como a da relação de personagens negros no romance brasileiro contemporâneo, da qual ela trata no estudo. A autora também chama a atenção para o fato de que as problemáticas apontadas visam entender como as questões raciais ocorriam na literatura brasileira a partir do mercado das grandes editoras na época (2008), sem a pretensão de limitar autores a escrever sobre o que é ou não comum a suas realidades. Dos 165 autores considerados na pesquisa, 72,7% eram homens, e 93,9% eram brancos. Quanto aos personagens, das 258 obras analisadas, 79,8% eram brancas e a grande maioria também era homem, fosse narrador, fosse protagonista. Conforme esses dados, a autora constatou que “não há, no campo literário brasileiro, uma pluralidade de perspectivas sociais.” Logo, pode haver também na literatura brasileira contemporânea uma única história predominante. No discurso de Adichie, sobre estereótipos criados a partir de uma única história contada sobre determinados grupos sociais, ela diz:
Ao observar meu contexto como leitora - alguém que tem um hábito de leitura constante, liberdade de escolher o que lê e acesso à informação -, ao lado das estatísticas sobre os autores que li, em sua maioria homens brancos, vejo o reflexo dessas estruturas de poder e as problemáticas aí contidas, que ultrapassam a experiência individual.
Para além das estatísticas, outra discussão no campo das desigualdades na literatura se refere ao cânone literário. Segundo Fabio Martins Moreira (3), o cânone literário é um conjunto de obras que representam as melhores produções literárias, também chamadas de obras-primas ou clássicos. “Com base nas definições apresentadas nas origens da palavra cânone, a relação de poder está totalmente ligada à escolha de autores que fazem parte dos seletos da literatura”. Na validação das obras canonizadas, estaria presente principalmente características ideológicas condizentes com o pensamento dominante, antes mesmo da qualidade literária das obras. O autor também ressalta que o questionamento do estudo não se dá em relação aos autores canonizados, mas sim naquelas que foram excluídas apesar de apresentarem qualidade para tal.
O autor destaca a exclusão de mulheres e negros do cânone, de modo que, junto à pesquisa de Dalcastagnè, podemos constatar essa ausência tanto na literatura nacional clássica quanto na contemporânea.
É da reflexão sobre essas histórias não contadas ou não ouvidas, da união entre números e literatura proporcionada pela Beatriz menina que registrava suas leituras até a Beatriz estudante de engenharia que resolveu analisá-las, que se destaca em minha jornada de fugir do perigo da história única a primeira autobiografia de Maya Angelou, “Eu sei que o pássaro canta na gaiola”.
Na obra, a autora conta sua infância e adolescência como menina negra nos Estados Unidos das décadas de 1930 e 1940. Ao ler sua história, não vemos apenas uma faceta do ser – como costuma ocorrer na difusão da história do outro -, ali acompanhamos seu crescimento, o amor pelo irmão, a inteligência, a paixão pelos livros, a estranheza de tornar-se mulher, assim como o racismo, o machismo, os abusos e os conflitos familiares. Apenas o início da impressionante vida de Maya Angelou (4).
Sou muito grata por toda a bagagem literária que me foi proporcionada ao longo da vida, tanto por minha educação formal quanto por minha família e amigos, assim como por aquela que descobri de modo autônomo. Entretanto, neste texto, procurei trazer um pouco do que tenho refletido não sobre aquilo que li, mas principalmente sobre o que não li. Espero, assim, ampliar cada vez mais as perspectivas presentes em meu histórico de leitura.
Sou imensamente grata principalmente pelas oportunidades que a literatura traz de conhecermos histórias múltiplas e diversas que nos aproximam de nós mesmos e do outro em sua complexidade.
Porém, o dado que mais me chocou foi a porcentagem de 90% de autores brancos.
Essas informações de meu histórico de leitura me lembraram do “perigo de uma única história”, sobre o qual fala Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana contemporânea, nessa palestra (1) no TED. Sobre sua experiência de leitura na infância, ela diz:
"Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. (...) Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos de cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são."
Como assim?, podem se perguntar. O que números têm a ver com literatura?, como as características dos autores e personagens influenciam a história?, o que isso tudo diz sobre a qualidade de um livro? Talvez pareça estranho falar de literatura a partir de estatísticas, principalmente quando daí surgem problematizações sociais.
Sobre essas questões, Regina Dalcastagnè, no artigo “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea” (2), aponta para a importância da utilização de estatísticas nos estudos literários, pois ajudam na identificação de dados concretos para uma discussão como a da relação de personagens negros no romance brasileiro contemporâneo, da qual ela trata no estudo. A autora também chama a atenção para o fato de que as problemáticas apontadas visam entender como as questões raciais ocorriam na literatura brasileira a partir do mercado das grandes editoras na época (2008), sem a pretensão de limitar autores a escrever sobre o que é ou não comum a suas realidades. Dos 165 autores considerados na pesquisa, 72,7% eram homens, e 93,9% eram brancos. Quanto aos personagens, das 258 obras analisadas, 79,8% eram brancas e a grande maioria também era homem, fosse narrador, fosse protagonista. Conforme esses dados, a autora constatou que “não há, no campo literário brasileiro, uma pluralidade de perspectivas sociais.” Logo, pode haver também na literatura brasileira contemporânea uma única história predominante. No discurso de Adichie, sobre estereótipos criados a partir de uma única história contada sobre determinados grupos sociais, ela diz:
"É assim, pois, que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é nkali. É um substantivo, que livremente se traduz: "ser maior do que o outro." Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são definidas pelo princípio do nkali. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa."
Ao observar meu contexto como leitora - alguém que tem um hábito de leitura constante, liberdade de escolher o que lê e acesso à informação -, ao lado das estatísticas sobre os autores que li, em sua maioria homens brancos, vejo o reflexo dessas estruturas de poder e as problemáticas aí contidas, que ultrapassam a experiência individual.
Para além das estatísticas, outra discussão no campo das desigualdades na literatura se refere ao cânone literário. Segundo Fabio Martins Moreira (3), o cânone literário é um conjunto de obras que representam as melhores produções literárias, também chamadas de obras-primas ou clássicos. “Com base nas definições apresentadas nas origens da palavra cânone, a relação de poder está totalmente ligada à escolha de autores que fazem parte dos seletos da literatura”. Na validação das obras canonizadas, estaria presente principalmente características ideológicas condizentes com o pensamento dominante, antes mesmo da qualidade literária das obras. O autor também ressalta que o questionamento do estudo não se dá em relação aos autores canonizados, mas sim naquelas que foram excluídas apesar de apresentarem qualidade para tal.
“Isso tudo não significa que o cânone representa uma consciente conspiração contra grupos minoritários. Muitos fatores relativos ao momento histórico, a tendências políticas e de poder influenciaram nas escolhas caracterizando uma exclusão, até certo ponto, inconsciente. Todavia, a visão tendenciosa aplicada no passado não se justifica no contexto contemporâneo, no qual o distanciamento temporal permite um olhar mais abrangente e, principalmente, imparcial nos critérios canônicos.”
O autor destaca a exclusão de mulheres e negros do cânone, de modo que, junto à pesquisa de Dalcastagnè, podemos constatar essa ausência tanto na literatura nacional clássica quanto na contemporânea.
É da reflexão sobre essas histórias não contadas ou não ouvidas, da união entre números e literatura proporcionada pela Beatriz menina que registrava suas leituras até a Beatriz estudante de engenharia que resolveu analisá-las, que se destaca em minha jornada de fugir do perigo da história única a primeira autobiografia de Maya Angelou, “Eu sei que o pássaro canta na gaiola”.
Na obra, a autora conta sua infância e adolescência como menina negra nos Estados Unidos das décadas de 1930 e 1940. Ao ler sua história, não vemos apenas uma faceta do ser – como costuma ocorrer na difusão da história do outro -, ali acompanhamos seu crescimento, o amor pelo irmão, a inteligência, a paixão pelos livros, a estranheza de tornar-se mulher, assim como o racismo, o machismo, os abusos e os conflitos familiares. Apenas o início da impressionante vida de Maya Angelou (4).
Sou muito grata por toda a bagagem literária que me foi proporcionada ao longo da vida, tanto por minha educação formal quanto por minha família e amigos, assim como por aquela que descobri de modo autônomo. Entretanto, neste texto, procurei trazer um pouco do que tenho refletido não sobre aquilo que li, mas principalmente sobre o que não li. Espero, assim, ampliar cada vez mais as perspectivas presentes em meu histórico de leitura.
Sou imensamente grata principalmente pelas oportunidades que a literatura traz de conhecermos histórias múltiplas e diversas que nos aproximam de nós mesmos e do outro em sua complexidade.
Referências:
(1) Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história (vídeo). Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg&t=982s
(2) Regina Dalcastagnè. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea (artigo). Acesse: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9620/1/ARTIGO_SilencioEstereotiposRelacoes.pdf.
(3) Fabio Martins Moreira. O cânone literário brasileiro: preconceito e eugenia em O presidente negro, de Monteiro Lobato (dissertação). Acesse: http://www.fw.uri.br/NewArquivos/pos/dissertacao/26.pdf.
(3) Fabio Martins Moreira. O cânone literário brasileiro: preconceito e eugenia em O presidente negro, de Monteiro Lobato (dissertação). Acesse: http://www.fw.uri.br/NewArquivos/pos/dissertacao/26.pdf.
(4) El País. Maya Angelou, uma vida completa (artigo jornalístico). Acesse: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/04/cultura/1522818455_771877.html.