A liberdade em Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector

Perto do coração selvagem é o primeiro romance de Clarice Lispector, publicado em 1943, quando a autora completava 23 anos. 

Recentemente, fui fisgada por uma das citações de Clarice (realmente de Clarice) que mais vejo circulando nas redes: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” Talvez devido à crise atual, em que o sentimento de aprisionamento tem sido mais pungente, comecei a refletir sobre o significado dessas palavras e tive vontade de conhecer o contexto em que foram escritas, logo, decidi ler Perto do coração selvagem.

Meu primeiro vislumbre da obra aconteceu quando li Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, há alguns anos. O trecho que mais me marcou no livro de Joyce foi justamente a epígrafe do romance de Clarice: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.

O centro da obra é o interior da personagem Joana, em diferentes momentos de sua vida, infância, adolescência e fase adulta. Embora acompanhemos os acontecimentos que a envolvem, desde a primeira página seus pensamentos e emoções são os protagonistas, pelos quais Clarice nos leva através do fluxo de consciência. A partir dessa subjetividade que é a experiência de ser de Joana, múltiplas reflexões podem ser destrinchadas das palavras que a autora utilizou tão intimamente. Porém, a ideia de uma espécie de liberdade ainda sem nome foi a que permaneceu comigo como uma das impressões mais fortes da leitura. O objetivo deste post é trazer minha interpretação pessoal dessa ideia.

A capa do livro ocupa toda a imagem, com partes iluminadas pelo sol e partes sombreadas. A capa é vermelha com traços de pintura pretos. O nome da autora, Clarice, está escrito em branco com detalhes amarelos, em fonte grande, e seu sobrenome Lispector aparece em letras menores em cima das letras CE. Embaixo do nome está o título em amarelo.
                                                              Foto: Autora. Edição do centenário de nascimento de Clarice Lispector (2019).

A liberdade é um conceito sempre atual, tanto a partir de perspectivas políticas quanto históricas, sociológicas, filosóficas. Mas meu foco aqui é trazer minha percepção de como se manifesta em Perto do coração selvagem.

Relembrando a citação que me levou ao livro:

"Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome."

Joana deseja algo que ainda não tem nome, algo que de alguma forma está além da liberdade. Faz parte da experiência humana nomear as coisas às quais conhecemos e com as quais nos importamos, ainda que de forma imprecisa, como na tentativa de descrever sentimentos. Para Joana, que o tempo todo pensa nos significados e nas palavras, há algo de fundamental na afirmação de desejar algo sem nome.

Trago alguns trechos que destaquei do capítulo ... O banho..., entre as páginas 64 e 69, e que levei em consideração em minha interpretação pessoal de o que Joana desejava.

"A chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro de abismo onde corre água. E uniu-o à noite. Aqui, junto à janela, o ar é mais calmo. Estrelas, estrelas, rezo. A palavra estala entre meus dentes em estilhaços frágeis. Porque não vem a chuva dentro de mim, eu quero ser estrela. Purificai-me um pouco e terei a massa desses seres que se guardam atrás da chuva. Nesse momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade asfixiante, como um excesso de ar, sentirei nítida a impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa – e ser realmente uma estrela."

(...)

"Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva."

(...)

"Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pequenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes. É a vida? Mesmo assim ela me escaparia. Outro modo de captá-la seria viver. Mas o sonho é mais completo que a realidade, esta me afoga na inconsciência. O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo? – Palavras muito puras, gotas de cristal."

(...)

"Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. – Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda."

(...)

"Quando ontem, na aula, repentinamente pensei, quase sem antecedentes, quase sem ligação com as coisas: o movimento explica a forma. A clara noção do perfeito, a liberdade súbita que senti... Naquele dia, na fazenda de titio, quando caí no rio. Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levantei, foi como se tivesse nascido da água. Sai molhada, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, soltos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certamente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente minha alma também. Nesse instante eu estava verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra, esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos. (…) É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci."

Joana observa a chuva e as estrelas, sente que elas a unem à noite, mas deseja algo além, ser estrela. O desejo que começa com um pensamento, uma inspiração que lhe deixa feliz, vai tornar-se o não poder ser de fato uma estrela. Diante da impossibilidade, Joana volta à consciência do próprio corpo, corpo cujos limites a assustam, pois quando ela não se olha, sente-se que vive espalhada, sem fronteiras. Joana reflete sobre a dicotomia viver ou saber que está vivendo, pensa numa forma de captar cada instante, mas percebe que de qualquer forma a vida a escapa. Aqui as palavras parecem exatas para o que está pensando, como "gotas de cristal". Joana percebe certa liberdade em si, em sua solitude, em seus pensamentos, ainda assim, sente-se presa. Porém, a palavra que lhe ocorre agora não é exata para o que deseja, que não é liberdade, é algo que ainda não tem nome. Ela se compara a um brinquedo que não pode escapar a sua natureza limitada. Da minha visão, o título do livro também reflete essa quase liberdade na palavra "perto", ou seja, o "coração selvagem" está quase aqui, mas não foi ainda alcançado.

Então, Joana relembra um episódio em que se sentiu livre, quando caiu no rio e ao sair sentiu-se nascendo da água. Naquele momento, apesar da consciência de seu corpo e de seu interior, ela sente-se plenamente unida aos elementos, o campo, o rio, o cavalo; e isso lhe traz uma felicidade pura. Aquele instante não foi apenas de inspiração inconcebível - como ao olhar a chuva e as estrelas -, ali se sentiu de fato ligada ao mundo que a rodeava, como se fossem uma coisa só.

A partir de tais fluxos da consciência de Joana, creio que o que ela desejava era ser como ela se sentiu no episódio do rio, tão sem limites quanto seus pensamentos. Liberdade é algo que a individualiza, mas o seu desejo era o de não ser apenas indivíduo, de ser mais do que sua existência permitia. No decorrer da narrativa do livro até seu desfecho, senti essa vontade sempre como plano de fundo da personagem.

A angústia de Joana me remeteu um pouco à de Horácio Oliveira, personagem de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar:

"Todavia, pessoas como ele e tantas outras, que se aceitavam a si mesmas (ou que se repeliam, mas conhecendo-se de perto), entravam sempre no pior paradoxo, estar talvez à beira da outridade e não poder alcançá-la." - O jogo da amarelinha, capítulo 22.

Ser livre implica primeiro ser. Independentemente de quão socialmente livre alguém possa ser, ainda precisa conviver consigo, com suas células, seu organismo, seu passado, seus pensamentos. Há sempre um outro, fora de nós, inalcançável em sua plenitude. De alguma forma, existir como ser humano é sempre limitante.

A coisa sem nome, profundamente desejada, é o não ser.