"por que, subitamente, a linguagem frutifica"

"Eu ia te aconselhar a não resistir à ordem das estações, porque dentro de cada uma as outras também estão operando, eu ia te ensinar por que se vê retirantes nos poentes, e por que não há hora certa pra inserir morte na paisagem, e por que aquele que sulca a terra e rasga com uma artéria d'água para irrigar a lavoura merece a reverência do sol e o respeito da chuva, eu ia te ensinar, Bia, por que, subitamente, a linguagem frutifica, vazando primavera por todos os poros, por que é mais digno se molhar no sangue do presente do que no pó dourado do passado, eu ia te ensinar por que de não em não o tempo se sacia em nós, o tempo nos nega os desejos e nos avilta os sonhos." -  João Anzanello Carrascoza, Caderno de um ausente, pág. 36.

Caderno de um ausente é um livro que sublinhei quase que inteiro. Inclusive, é provável que tenha inaugurado em minha vida leitora a fase de sublinhar nas páginas dos livros. Isso porque foi uma narrativa que falou muito comigo, e não só pela coincidência de o narrador escrever um caderno para sua filha recém nascida Bia, minha xará. O pai deseja deixar um pouco de si para ela, pois acredita que - por já ter uma idade avançada -, não estará presente na maior parte de sua história. Assim, mais do que conselhos ou conclusões prontas, ele discorre sobre a vida e suas complexidades, de forma bastante poética e muitas vezes metalinguística, e aí não tinha como eu não grifar páginas inteiras.

O trecho acima é um dos que levo comigo. Embora tenha sido a legenda da foto que postei no primeiro dia de 2020 (na maior inocência do que seria 2020), acredito que ele faça ainda mais sentido para mim agora. O tempo e a linguagem permeiam todo o texto como acredito permearem a experiência humana de viver. E eu estava tentando encontrar palavras para recomeçar a publicar neste espaço, pensando nas experiências e tentativas anteriores, em como habitar o momento presente; nesse tempo que tem sido sobretudo de tragédias, desejos negados e sonhos aviltados, etc. Achei que seria oportuno, então, começar com ele, mais uma vez, ao "me molhar no sangue do presente".

Foto que tirei quando estava lendo.