A filha perdida - Elena Ferrante
A filha perdida é um recorte da vida de Leda, uma professora universitária cujas filhas, duas jovens adultas, se mudaram para o Canadá para morar com o pai, o que é inicialmente apresentado por ela como motivo de alívio devido à aparente libertação de suas responsabilidades maternas. É Leda que narra em primeira pessoa os dias passados no litoral italiano, onde uma mãe e sua filha pequena cativam seu interesse e fazem com que ela relembre diferentes épocas de sua vida, especialmente sua relação com as filhas.
Imagem: Livraria da Travessa
Enquanto lia, sublinhei trechos que pudessem me ajudar a desvendar Leda a partir das impressões, sentimentos, pensamentos que ela expressa ao longo do livro. É através dessas observações – sobre si mesma e os outros -, que conhecemos sua complexidade, principalmente como mãe, a qual, no entanto, não é a única matéria humana exposta na obra. Assim, à medida que lia, era como se conversasse com ela, ouvindo-a contar sua história de forma vulnerável e fragmentada a partir das lembranças suscitadas pelos acontecimentos de suas férias.
No primeiro capítulo, que cronologicamente seria o último, Leda menciona um gesto sem sentido, cometido durante sua estadia no litoral, narrada a partir do segundo capítulo. Leda conta seu alívio e sua mudança de hábitos decorrentes dos últimos meses em que havia vivido sozinha, sem as duas filhas, Bianca e Marta, depois que elas se mudaram para o Canadá. Leda descreve um grande bem-estar em sua nova vida, que se estende às férias que a levam a viajar, também sozinha, ao litoral.
Ninguém dependia mais dos meus cuidados, e finalmente eu não era mais um peso para mim mesma.Pág. 15
Porém, logo descobrimos que ela não é tão desapegada quanto provavelmente acha que é, a lembrança das filhas e do papel como mãe a atravessam permanentemente, seja a favor ou contra a corrente do seu passado. Na casa onde se hospeda, ela relembra das viagens em família e daquelas que as filhas começaram a fazer por conta própria quando mais velhas, as quais despertavam em Leda diversas preocupações.
Eu queria estar pronta para lidar com pedidos repentinos de ajuda, temia que me acusassem de ser como eu de fato era: distraída ou ausente, absorta em mim mesma.Pág. 11
Leda vai à mesma praia quase todos os dias, onde alterna entre trabalhar e desfrutar do local. Assim, com o passar dos dias ela estabelece alguma familiaridade com pessoas que estão sempre ali, como Gino, o jovem salva-vidas, a quem ela vê como que pelas lentes das filhas, pensando o que achariam dele.
Percebi há muito tempo que conservo pouco de mim e tudo delas.Pág. 15
Quando uma família de napolitanos começa a frequentar a praia, Leda logo repara em uma jovem mãe, Nina, com sua filha pequena, Elena. As duas parecem ter uma relação harmoniosa, conversam, brincam, cuidam da boneca de Elena. Leda passa a observá-las, a comparar aquela maternidade com a sua própria experiência. Paralelamente, a família grande à qual pertencem lembram a de Leda, pertencentes a uma realidade da qual ela se orgulha de ter fugido assim que pode, na juventude.
Aquela mulher, Nina, parecia serena, e eu senti inveja.Pág. 21
Assim começam a aflorar suas lembranças, onde vemos a mãe de Leda como uma mulher por ela julgada infeliz, que ameaçava ir embora quando ela era pequena, mas que nunca o fez. Leda tinha necessidade de independência, e foi o que passou às suas filhas desde crianças, o que, por outro lado, gerou outras tensões.
Mas era evidente que eu não conseguia entrar na ilusão delas, sentia por aquela voz dupla uma repulsa cada vez maior. Claro, eu, a uma certa distância, não tinha nada a ver com a encenação, podia acompanhar a brincadeira ou ignorá-la, era apenas um passatempo. Mas me sentia desconfortável como se estivesse diante de algo malfeito, como se parte de mim exigisse intensamente que elas se decidissem e dessem à boneca uma voz estável, constante, a da mãe ou a da filha, chega de fingir que eram a mesma coisa.Pág. 25
A partir daí, a personalidade de Leda é revelada por ela mesma em comparação às filhas e a outras mulheres, em especial Nina. Ela se diz superficial depois de reparar em outra mulher da família, que está grávida na meia idade, apenas depois de muito tempo observando a jovem. Algumas páginas depois, ao falar com a filha pelo telefone, pensa nela como frívola.
Eu havia prestado tanta atenção em Nina só porque a considerava fisicamente mais próxima enquanto a Rosaria, que era feia e despretensiosa, não tinha dedicado um único olhar. Quantas vezes devem tê-la chamado pelo nome e eu não percebera. Eu mantivera fora do campo de visão, sem curiosidade, a imagem anônima de uma mulher que conduzia a própria gravidez de forma grosseira. Ali estava o que eu era: superficial.Pág. 36
Nas lembranças de Leda, conhecemos sua infelicidade quando tinha de conciliar o cuidado das filhas pequenas com seus estudos, enquanto o marido crescia em sua carreira. Leda o descreve como um homem gentil, que sempre fazia o possível, não o culpa. Não há culpados por tudo o que aconteceu durante a vida de Leda, e, a meu ver, a obra trata as dificuldades da maternidade, e até mesmo a maternidade em si, como produtos involuntários da realidade da mulher nesta sociedade. E os episódios dos quais ela se lembra, no decorrer da narrativa, revelam as piores partes dessa realidade, decepções, mágoas, situações praticamente inevitáveis embora coletiva e voluntariamente ignoradas diante do papel idealizado da maternidade, as quais muitas vezes levam Leda a escolhas julgadas socialmente condenáveis. Até mesmo Nina, cuja relação com a filha parece inicialmente perfeita, logo se vê desorientada, capaz de atitudes irresponsáveis. Ambas, Leda e Nina, apesar dos contextos diferentes em que se encontram, se identificam ao tentar se equilibrar no desejo de preservarem quem são e serem tudo para as filhas. No caso de Leda, devido ao fato de suas filhas serem mulheres, há ainda o fator da comparação entre as irmãs e entre elas e a mãe, que muitas vezes a incomoda. Ainda assim, ela tenta fazer o melhor possível pelas filhas, descobrir seu lugar em suas vidas.
Sua vida quer se tornar a de outro. Bianca foi expulsa, se expulsou, mas - era o que todos à nossa volta acreditavam, então nós também acreditamos – não podia crescer sozinha, triste demais, era necessário um irmão, uma irmã para lhe fazer companhia. Por isso, logo depois dela, programei, obediente, sim, exatamente como se diz, programei que crescesse em meu ventre Marta.Pág. 45
Eu achava que todo sofrimento que atingisse as minhas filhas era fruto do já comprovado fracasso do meu amor. (...) Lembrava, até bem demais, como na idade de Marta eu estava convencida de que minha mãe, ao me fazer, se afastara de mim, como quando temos um impulso de rejeição e afastamos o prato com um gesto.Pág. 72
As reações sentimentais, físicas e corporais de Leda são expostas de forma crua, direta, assim como suas impressões de si e dos outros, e são contrastantes uma das outras, como são as nossas experiências. A escrita de Elena Ferrante me atingiu como que de dentro para fora, verbalizando coisas que geralmente não encaramos nem gostamos de encarar. A maternidade, embora centro das questões de Leda, está ligada à condição social da mulher, às escolhas que oscilam entre o querer individual e as expectativas alheias, enfim, à vida. É uma obra que pode fazer com que o leitor se encontre um pouco mais perto de si mesmo.
As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto.Pág. 20