As meninas - Lygia Fagundes Telles



Uma borboleta pousou no corrimão bem ao meu alcance. Prendi-a pelas asas mas tremeu tanto que soltei-a. Saiu voando buleversada como se tivesse ficado cem anos presa. Nos meus dedos, o pó prateado. Tão breve tudo. Prendi assim a alegria, ainda há pouco foi minha mas se debateu tanto que abri os dedos antes que se ferisse, não se pode forçar. Um pouco mais que se aperte e não fica só o pó, mas a alma.
Lorena, página 181

As meninas é um romance de três pilares, o trio de amigas formado por Lorena, Lia e Ana Clara, universitárias e residentes de um pensionato católico durante a ditadura militar, mesma época em que Lygia Fagundes Telles escreveu a obra, publicada em 1973. Porém, apesar do contexto, da amizade e da juventude que as unem, são meninas essencialmente muito diferentes.

Uma boa menina. Ana Clara também é uma boa menina, eu também sou uma boa menina.
Lia, página 31

Lorena de Vaz Leme é filha da burguesia, cursa Direito e está apaixonada por M.N.,um médico casado. Sua história é rodeada por dramas familiares: a internação do pai, o novo parceiro de sua mãe, que teme a velhice, e a morte precoce e acidental de um de seus irmãos, que acabamos sem a certeza de ter sido como Lorena lembra e relembra o tempo todo. Lia de Melo Schultz, apelidada de Lião, é filha de um alemão e de uma baiana, estuda Ciências Sociais e perdeu o ano por faltas, devido a seu engajamento na militância de esquerda contra a ditadura. Sua preocupação com o rumo da sociedade de sua época, preocupação que Lorena admite não sentir, é escancarada por sua “mania de discurso” e acentua-se quando lembra dos amigos presos, especialmente de Miguel, seu namorado. Ana Clara Conceição não tem o sobrenome do pai, as amigas a chamam de Ana Turva, Deprimida, Deprimente, é essa apenas uma das razões de seu ressentimento com a vida. Trancou o curso de Psicologia. Não se preocupa com o rumo da sociedade porque foi vítima dela, dos abusos da pobreza, dos homens, de uma infância roubada. Refugiou-se nas mentiras, nos noivos ricos de quem espera um resgate e nas drogas. Lorena é o elo entre elas, empresta o carro às operações do grupo de Lião, paciência e companhia a Ana Clara em suas crises e tentativas de recuperação, e dinheiro a ambas.

Como podem me perdoar? Nem a Loreninha que me dá presentes e dinheiro e me pinta quando minha mão treme demais nem a Lorena que lava meus pentes. Oriehnid. Aquele arzinho superior que conheço bem. (...) Não é que não goste dela. Gosto. Mas me enerva com aquele jeitinho todo especial de dar conselhos sem aconselhar uns conselhos enroladinhos toda ela é enroladinha. Nhem-nhem.
Ana Clara, página 94.

A narrativa é construída principalmente pelo discurso indireto livre, o tempo todo vemos as meninas pelos olhos uma das outras, e o narrador em terceira pessoa, quando surge, geralmente é para fazer a ponte da mente de uma para a de outra. As palavras acompanham o fluxo do pensamento: o de Lorena assemelha-se a sua higiene extrema, é limpo, cheio de referências, palavras em latim, música internacional, embora esteja sempre voltando a sua virgindade, à expectativa da ligação de seu amado, sua família, seus amigos, enquanto o de Ana Clara é o efeito das drogas, um turbilhão de fragmentos de memória e delírio do qual vamos puxando o fio de sua história, desvendando suas mentiras. Por dois dias, tempo em que o enredo se desenrola, somos permitidos a adentrar seus mundos individuais, suas conchas, como diria Lorena, uma das principais razões porque me senti tão cativada.

O prazer que encontro neste simples ritual de preparar o chá é quase tão intenso quanto o de ouvir música. Ou ler poesia. Ou tomar banho. Ou ou ou. Há tantas pequeninas coisas que me dão prazer que morrerei de prazer quando chegar a coisa maior. Será mesmo maior, M.N.?
Lorena, página 27

Outra razão é a voz da autora que se manifesta através das personagens no tempo em que deveria se calar. Da mãe de Lorena, obcecada por aparentar ser mais jovem, bem como dela própria, cujo quarto cheio de objetos delicados e imaculados, cuja religiosidade e cuja aparente inocência não deixam entrever, a não ser aos leitores, o urgente desejo sexual, a paixão pelo homem casado e a raiva pela esposa que impede a concretização do amor, desvelam-se as problemáticas da burguesia brasileira desse período (algumas das quais ainda se estendem ao nosso). Da vida atormentada de Ana Clara, escancaram-se as consequências das feridas sociais: os abortos acudidos por Lorena, um dos quais ocasião de seu encontro com M.N., o envolvimento do namorado de família rica com o tráfico, as mentiras, as bebedeiras, a overdose. De Lião, que não crê mas parece mais simpatizante da moral cristã do que Lorena, gritam a resistência, o pensamento liberal, o combate ao preconceito, a coragem, a esperança. Ademais, As meninas trouxe o primeiro depoimento de tortura de nossa literatura, cru no tom jornalístico do texto lido por Lião.

“Lena, me dá sua mão”, pediu Ana Clara. Deu-lhe a mão, constrangida: sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor. Um suor frio como a sala, frio como a luz do holofote. Na estreita faixa entre o gorro e a máscara, os olhos do médico eram frios. A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões: “Um, dois, três, quatro, cinco... seis... ssss...”. A luta metálica dos ferros se entrechocando. O peso do sangue na gaze. O hálito de éter se desfazendo no ar. To be or not to be. Not to be.
Lorena, página 69

O Japona deixou uma maleta na casa do irmão, avisou que ia buscar no dia seguinte. Faz um ano isso, a maleta ainda está lá.
Lia, página 33.

Entretanto, foi pela verossimilhança e delicadeza de cada personagem, pela destreza da autora, que se tornou possível comunicar tanta humanidade, política e literatura em As meninas. Apesar da diferença entre seus problemas e personalidades, as três compartilham uma amizade em que a expressão de uma se incorpora ao vocabulário da outra, em que pensam uma nas outras o tempo todo, em que se complementam. Lorena e Lião compartilham da saudade da infância e da família, enquanto Ana Clara bebe para esquecer os traumas de seu passado, as três comovem-se com os próprios pensamentos, as três fazem planos que não têm certeza de que se realizarão.

Lembro da ampulheta quebrada, entrei no escritório do pai pra pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo. Fiquei em pânico vendo o tempo estacionado no chão: dois punhados de areia e os cacos. Passado e futuro. E eu? Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçaram? Só o funil da ampulheta resistira e no funil, o grão de areia em trânsito sem se comprometer com os extremos. Livre. Sou – digo e tenho vontade correr até Lorena e avisá-la que nesse andar de minhocações poderemos participar do próximo congresso de filosofia com as corujinhas de prata na gola, ô! Respiro e olho em frente.
Lia, página 272.

Em certo ponto, Lorena pensa nas palavras: Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. Mas na raiz são descomprometidas. Umas crianças, A, B, H, M, O... Tão raro o X. Em declínio, o Z, rei desmemoriado, o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador. Ponho o dedo em cima do F desventrado que Irmã Bula bordou, as letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos, agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Pelo talento de Lygia Fagundes Telles, as letras juntas de fato mostram sua força, sua beleza, seu poder de tragar o leitor para a mente de suas personagens e suas meninas para o coração do leitor. Foi essa a minha experiência, pelo menos. As meninas entrou para minha longa e especial lista bem conhecida por todo leitor: a lista dos livros preferidos da vida.

Terei que dizer adeus à concha cor-de-rosa. Mas pra onde quer que eu vá e passe o tempo que passar sei que não vou esquecer seus incensos. Suas recitações. Suas músicas. Mil anos e posso vê-la branquinha e magrinha na sua malha preta, deitada de costas, pedalando no ar.
Lia sobre Lorena, página 150.

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 Ficha técnica


Título original: As meninas
Autora: Lygia Fagundes Telles
Editora: Companhia das Letras
Nº de páginas: 304
Ano do lançamento original: 1973

Histórico de leitura:
Lido em janeiro de 2019 na edição da coleção Folha de S. Paulo de Literatura ibero-americana.



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