Quarto de despejo - Carolina Maria de Jesus


    "Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos."

     O diário de alguém é sempre uma leitura muito intimista. A literatura, em si, é uma maneira de ver o mundo através dos olhos de outras pessoas, mesmo que de forma imaginária. Porém, a leitura de um diário, a realidade do outro escrita em primeira pessoa, leva essa ideia ao extremo. Pelo menos é isso o que sinto todas as vezes em que releio O diário de Anne Frank, por exemplo, um dos diários mais famosos do mundo, escrito por uma adolescente judia que viveu num esconderijo durante a Segunda Guerra Mundial. O principal impacto da leitura de um diário como esse é a aproximação do leitor com os sentimentos humanos e, especialmente, com a rotina real de alguém que viveu situações dificilmente imaginadas por sua experiência, aspectos que um livro de História não abrange.
    Infelizmente, nem todos os livros desse gênero alcançam uma fama tão vasta, como é o caso de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Apesar do sucesso inicial, cerca de cem mil exemplares vendidos até poucos meses depois do lançamento em 1960, o livro é desconhecido por uma boa parte dos leitores brasileiros. Para a autora, Carolina Maria de Jesus, os livros eram um ideal: atribuiu a eles a formação de seu caráter. Através de sua história, parte narrada em “Quarto de despejo”, podemos permitir que o nosso seja encorajado a crescer.

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    Em seu diário, escrito na década de 50, Carolina descreve sua rotina, vivida em torno da favela do Canindé, onde morava, do trabalho como catadora de lixo e da criação dos três filhos. Dia após dia conhecemos a luta de Carolina para sustentar a si mesma e aos filhos com o parco dinheiro recebido pelo peso dos papéis, ferros, e outros materiais recicláveis coletados durante o dia. Raramente era suficiente, frequentemente passavam fome e a comida encontrada no lixo se tornava viável. A autora descreve ricamente seus vizinhos, outros moradores da favela, seus hábitos e muitas vezes parte de suas histórias, bem como sua relação com eles. Conforme seus registros, ela costumava se manter mais reservada, não gostava da confusão e da imoralidade que observava, chegava até mesmo a apartar brigas. Para ela, “a favela é o quarto de despejo da cidade”, daí nasceu o título do livro. Carolina lia e escrevia com frequência, como seria notável mesmo que ela não registrasse, devido à forma como se expressa, alternando entre narração, descrição e opinião. E ela de fato tinha uma opinião a verbalizar, especialmente em relação aos fatos que levavam à condição em que vivia, à política e às atitudes que observava tanto na favela quanto fora dela.

  
    “Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.”

    O que considero mais tocante em relação ao diário de Carolina é que ela era uma mulher que não se conformava. Apesar de todo o tempo em que viveu na favela, da qual saiu com os recursos adquiridos com o lançamento do livro, Carolina não se deixava abater por muito tempo, lutava contra a fome, contra a tristeza e contra as possibilidades, escrevia com esperança de que suas palavras seriam lidas e sua realidade conhecida. E, de fato, foram. A importância da literatura representada por Carolina é mais do que cultural, é a demonstração do poder das palavras de diminuir a distância entre seres humanos, que continuam iguais apesar de seus recursos materiais.

    “Há existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá… isto é mentira! Mas, as misérias são reais.”

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Ficha técnica


Título original: Quarto de despejo: diário de uma favelada
Autora: Carolina Maria de Jesus
Editora (versão mais recente): Ática
Nº de páginas: 200
Ano lançamento original: 1960
Preço médio: R$37,70

Histórico de leitura:
Lido em janeiro de 2018.


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