Ao mar
Para quem nasceu em
alto-mar, o balanço do barco é refúgio. Água se estende para
todos os lados, quebra no casco o silêncio que vem das profundezas.
À direita, a linha concreta da costa, longe o suficiente para
guardar o barulho das vozes que a povoam. Ao redor, incessantemente
perto, o horizonte: além-mar. Sobre a amurada, a tripulante: olhos
que evitam a solidez da terra perscrutando o oceano.
Os limites da costa
a chateiam,
tão diferentes da liberdade fluida do subir e descer do barco. Ela
lembra-se das sereias que costumava ver quando criança, debruçada
assim a bombordo. Vinham contar-lhe histórias de lugares tão
distantes quanto sonhos. Naquela época, ainda vivia perto da costa e
aqueles que a puseram sobre o mundo ensinavam-na a soltar a corda que
a prendia ao cais. A única diferença entre o mar e a praia era
aquilo que os formavam, água contra terra. Depois, à medida em que
as formas de seu corpo se delineavam, eles também desenvolveram
novos contornos, claros e singulares. Ela vê, agora, a costa que é
só a silhueta de todo um continente, sólida e firme, apesar das
forças externas que lhe ferem. E o mar, aquele que a cativou, que a
afastou de lá com seu magnetismo, com seu mistério, com suas ondas
ternas que inundam a praia com alimentos e mensagens e esperanças e
vida.
De longe, o
continente é mesmo impassível. Quase todos, mesmo nascendo sobre as
águas, buscam sua segurança imperturbável e seus barcos permanecem
como conchas vazias sobre a areia. Lá o povo se sufoca com camadas
de desconfiança que pesam feito armaduras. Alegam legítima defesa
de balas invisíveis constituídas de ódio, mas elas perfuram cada
vez mais fundo e se esgotou a coragem para perdoar. Todos ferem
enquanto são feridos.
Aqui, na
privacidade de seu estar em meio à imensidão, a tripulante deixa-se
levar pela liberdade que desliza sobre o oceano. Suas roupas pouco
fazem para cobri-la do afagar do vento, e ele revela sua beleza e sua
imperfeição. Nem mesmo o reflexo de si que ela vê em águas rasas
a conhece como o vento. Este é que empurra o barco apesar das
correntes contrárias, o equilibra sobre as grandes ondas e o guia
por mapas invisíveis traçados na superfície. Embora esteja além
da capacidade de seus olhos, sua presença é tão concreta que toca
o próprio ritmo do mar quando anda sobre ele. A satisfação que
tantos buscam em terra é o que ela sente quando o vento bagunça
seus cabelos e sussurra versos aos seus ouvidos, levando-lhe um riso
e palavras sinceras que se espalham como o pólen de uma flor.
Ocasionalmente,
outros barcos se aproximam. Trazem diferentes tripulantes com novas
histórias e esboços das ilhas e rotas que percorreram. Costumam
navegar lado a lado por um tempo, até que seus mapas apontam para
polos opostos. Porém, nunca vão sem deixar algum carinho
entrelaçado nas amuradas de seu navio ou sem levar uma das cartas
que ela escreve com palavras que têm pescado para viver. As palavras
são seu sustento. Elas são moldáveis e, com paciência, podem ser
trançadas como cordas, afiadas feito espadas ou infladas à forma de
balões que voam para longe.
A praia agora está
tão longe que os olhos não a encontram mais. O céu está aflito de
nuvens cansadas e lúgubres que por muito tempo carregaram mais do
que podiam suportar e se inclinam agora sobre o mar. As velas do
barco murcharam pelo ar quase estático. O gosto de sal é familiar.
Respingos ou lágrimas, ambos excessos incontidos. Então, vem a
chuva. O som cobre tudo, enche o mar, é absorvido através da pele.
À medida em que as nuvens se desfazem de seu fardo, água se acumula
sobre o barco, preenchendo todos os seus vãos. As roupas grudam no
corpo e as gotas doces lavam os olhos do sal. O barco transborda sem
afundar. Sua única tripulante não sabe que chorou e seu grito se
perdeu sob a coluna de água, mas ela se prendeu à amurada. As
nuvens dão seu último suspiro e silenciam, enfim. Água escorre
pelas laterais até que o barco esteja mais leve do que nunca.
Ela levanta-se, há
um arco de cores sobre seus olhos. Retornaram os raios de sol e a
harmonia de seu silêncio sobre a desarmonia do encanto do mar. Outra
vez o vento infla aquelas velas, o barco traça um rasgo branco de
espuma sobre a superfície. Ela esquadrinha com o olhar o horizonte,
por todos os lados. Uma pequena linha encontra-se ao longe, tem uma
cor diferente do continente que costumava ver. Talvez seja aquele
lugar do qual lhe falavam as sereias quando era criança; chamavam-no
futuro. É para esse lado que o vento sopra, suave e convicto, com um
canto alegre que prediz coisas boas. Ela navega, então, para lá.
Beatriz Teixeira
novembro-dezembro/2016
![]() |
We Heart It |